Por que elle tem que meter o nariz em tudo?

      31/8/2009
     
      Precedente perigoso
     
      Editorial
     
     
            Entre os tropeços do presidente da República nos últimos dias, 
dissonantes de sua habitual galhardia no manejo da palavra, lembrei que ele 
"entrou a litigar abraçando a causa de uma entre duas altas servidoras, como se 
fosse adequado a um presidente imiscuir-se em controvérsia dessa ordem". 

            Limitei-me a dizer que ele detém soma de poderes que vão além dos 
que lhe assina a Constituição. São imensos, mas nem por isso duram sempre. Mais 
não disse porque prefiro ficar no mundo objetivo dos fatos em vez de perambular 
por entre intermináveis subjetividades. Contudo, confesso, não supunha que tão 
cedo se estampassem os efeitos danosos de suas indevidas interferências, tudo 
para prestigiar a servidora que ele, unipessoalmente, fizera candidata à sua 
sucessão. 

            Num repente, número expressivo de altos funcionários da Receita 
demitiu-se das funções de confiança que vinham exercendo, denunciando a 
contaminação do serviço pelo vírus da politiquice. Dia seguinte, mais um lote 
deles, distribuídos por vários Estados, repetiu o gesto insuspeitado. Mais um 
dia, e novo contingente. Só em São Paulo, foram 20. E, desse modo, em setor de 
particular responsabilidade, inopinadamente, armou-se séria crise ou que outro 
nome tenha ou lhe seja dado. 

            Embora todos os segmentos do serviço público tenham a mesma 
natureza, interligados por regras tradicionais do Direito Administrativo e hoje 
por preceito expresso da Constituição, nem todos eles se igualam. Os setores 
militares, por exemplo, têm peculiaridades decorrentes de sua própria natureza; 
igualmente os referentes às relações exteriores; o segmento da Receita também 
tem suas características. Começa por ser dos melhor aparelhados, aliás, para 
lidar com múltiplas situações distribuídas por enormes faixas de brasileiros e 
estrangeiros aqui residentes; ou muito me engano, ou para a Receita não há 
segredos inacessíveis; vou além, pela posse de seus instrumentos de trabalho, 
chega a ser perigosa, razão por que o desvio de um milímetro nas regras de 
isenção, objetividade, discrição, reserva, equilíbrio, imparcialidade, enfim da 
fidelidade às suas finalidades, pode converter-se em insegurança coletiva e 
descrédito fatal de um serviço relevante. Não me sinto habilitado a opinar a 
respeito do caso, mas as circunstâncias que têm cercado o episódio não são 
lisonjeiras, pois ninguém pode ignorar nem menosprezar o sentido da demissão da 
chefe da Receita seguida de demissão de altos servidores, em declarado sinal de 
protesto pelo ingresso do partidismo em setor que não pode ser contaminado por 
esse mal que, começado, não se sabe como e onde termina. 

            Esta a situação atual da Receita. Sem pretender firmar uma 
conclusão a respeito do que está acontecendo ou do que aconteceu, volto a 
acentuar, o que há é uma situação de inafastável perplexidade ou de muitas 
perplexidades. E isto, querendo ou não, compromete a credibilidade do serviço. 
Para o ministro da Fazenda, isso não passa de "balela" e o que se pretende 
ocultar é a ineficiência da antiga chefe do órgão. Seria preferível que o 
ministro não tivesse falado. Um troca-tintas qualquer poderia ficar nesse 
plano, um ministro de Estado não poderia. É verdade que este já se celebrizou 
com os acontecimentos da abolição da CPMF em dezembro de 2007 e o compromisso 
feito em nome do presidente da República acerca de não serem aumentados 
tributos que compensassem a extinção da famosa contribuição provisória, que 
agora, com outro nome, se pretende ressuscitar. 

            O que me parece fora de dúvida é que os serviços da Receita hão de 
ser acima de qualquer dúvida acerca de sua idoneidade ou ela se converte em 
instrumento de insegurança de brasileiros e estrangeiros residentes no país, 
como proclama a Constituição. E não será com expedientes de subúrbio que a boa 
reputação será restabelecida. 

            *Jurista, ministro aposentado do STF
           
              
            Zero Hora / RS - Paulo Brossard*
           
     

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