já escrevi diversas vezes que minh a diversão é passear pelo rio
desde que li “A arte de andar pelas ruas do Rio de Janeiro” do Rubem Fonseca
foi uma conversão imediata ao ATOISMO, ainda que neste caso, peripatetico,
ainda que seja mais proximo do FLANEUR - tipo comum encontrado na beira do
SENA no inicio do século passado.

hoje na coluna do Joaquim Ferreira dos Santos - Página 8 do Ze Globe - foi
exatamente publicada esta coluna, transcrita abaixo

ak
flaneur de carterinha


   Esconderijo
Bin Laden tem as cavernas, o carioca tem os becos do Centro
 Um dos meus livros de cabeceira é “A arte de andar pelas ruas do Rio de
Janeiro”, e como a Agir acabou de publicar uma edição caprichada deste
fabuloso conto de Rubem Fonseca, eu botei o chapéu de lado, o tênis
arrastando — e fui ao que também me é máximo deleite. Flanar. Chutar
pedrinhas. Esquecer de tudo, das dores do mundo, deixar que essas músicas
percorram a mente na caminhada e, da mesma maneira que entraram, cumpram seu
destino, e saiam. Walkterapia.

Há quem goste de andar para pensar melhor, organizar as ideias. Eu caminho
de um lado para o outro para sumir com elas. Espanar os morcegos do sótão,
botar as bruxas para pegar um sol. Zerar o QI. Pensar, no máximo, na morte
da bezerra e não tirar qualquer conclusão disso. Foi o que fiz semana
passada ao estilo de sempre. Ensimesmado em mim mesmo, caramujo de mim
próprio. Devagar para mais divagar, eis o lema do caminhante soturno. Como
diria o Cauby, andei, andei, andei.

Eu vinha descendo a Senador Dantas a 1km por hora pela calçada da esquerda e
queria atravessar a rua, ir até o antigo cinema Vitória e ver como estavam
as coisas. Augusto Epifânio, o personagem principal do conto de Rubem
Fonseca, começa a trama duelando com um pastor evangélico, quando funcionava
no cinema a Igreja de Jesus Salvador das Almas. Eu vinha descendo a Senador
Dantas, passava uma mulher de perna azul-turquesa, passava moto estacionada
sob a placa “vagas a 90 graus”, passava outra mulher de perna
verde-esmeralda, passava uma mendiga autoamarrada com a bolsa na grade de
uma loja para não ser roubada enquanto dormia. Passava um Rio não olímpico,
fora dos padrões da Fifa.

Eu vinha descendo a Senador Dantas desde a Avenida Almirante Barroso, pela
calçada da esquerda, e, quando vi aquela placa, resolvi entrar à esquerda.
Eu estava na Travessa dos Poetas da Calçada, um desses becos do Centro em
que todo mundo passa, mas nunca presta atenção no nome. Não havia na placa
explicação sobre que poetas da calçada eram aqueles.

Por ali, nos anos 70, cercado pelas obras do metrô, um sujeito chamado
Gilson escrevia poemas com giz nos tapumes. Seria ele? Drummond trabalhava
três quadras adiante, no Castelo, mas já perguntei ao professor Alexei
Bueno, com quem cruzei certa vez no beco. Ele desmentiu. O poeta devia ser
outro.

O registro mais poético ali é a tabuleta do restaurante Al Kwait, o árabe
mais antigo do Rio, anunciando Homus Bethine, Charuto de folha de uva e Baba
Ganuch. Era cedo para o almoço. Assim que parei diante da tabuleta, uma
garota de top e minissaia me pôs na mão um folheto oferecendo as louras e as
mulatas mais quentes do Centro. Também era cedo. Guardei tudo no bolso da
japona, já atulhado de folhetos “compro ouro”, e pensei na morte da bezerra.
Queria ser Rubem Fonseca e adivinhar por que ele não fez seu personagem
principal circular por ali.

Augusto Epifânio morava na Sete de Setembro, no sobrado da chapelaria
feminina que hoje é uma das entradas da Cavé, e pegava no trabalho a
namorada, uma prostituta da Cinelândia que usava como escritório um quarto
da Rua das Marrecas. Nunca entrou na Poetas da Calçada, um entroncamento
fundamental na vida dos bons paranoicos da cidade. Se você entrar nela e
seguir em frente, vindo da Senador Dantas, vai dar na Treze de Maio. Se
entrar e pegar a direita, ao lado do Al Kwait, dá num outro beco que entra
no edifício Darke, e esse por sua vez tem três saídas, além dos elevadores e
escadas.

Sempre que eu tenho a sensação de estar sendo perseguido por algum fantasma
alucinado ou alguma entidade de fato, eu entro no Darke pela Treze de Maio,
dobro na porta à direita, saio na Travessa dos Poetas, sigo à esquerda como
se quisesse chegar na Senador Dantas, mas, ao estilo de um Garrincha
andarilho, driblo meus perseguidores. Entro antes no beco ao lado do Al
Kwait, volto para dentro do Darke e, se o fantasma ainda não estiver tonto,
se a ex-namorada ainda não teve uma convulsão, saio correndo de volta para a
Treze de Maio. Décadas atrás, eu vi Wilson Grey, o grande vilão das
chanchadas, descendo apressado do elevador do Darke para a rua.

Acho que ele estava fugindo do Anselmo Duarte ou da Dercy Gonçalves. É o que
estou fazendo agora, caminhando e cantando, picando a mula para longe do que
me é só apoquentação, pau, despautérios e parlapatões.

Eu desço correndo a Treze de Maio, cruzo a Evaristo da Veiga, passo pela
Gaiola de Ouro, entro na Alcindo Guanabara e, sempre na esperança de que os
fantasmas tenham ficado presos nos labirintos do Darke, me meto agora nos
becos da Álvaro Alvim. Há muitos ratos por ali, todos sobreviventes de
muitas caçadas, e eu gosto de me fingir um deles. Passo pela esquina com a
Travessa Ator Jayme Costa, de apenas 20 metros, onde havia as batidas do
Tangará e uma vez, saído do Teatro Rival logo em frente, eu vi o Grande
Otelo entornando uma de coco na memória das suas alucinações. O Tangará
fechou.

Continuo descendo a Álvaro Alvim em direção à Rua do Passeio e lembro que na
esquina da travessa seguinte, a Francisco Serrador, havia o Oxalá. Fechou.
Augusto Epifânio, levado pelas mãos de Rubem Fonseca, passava por aqui e
logo depois da Travessa Embaixador Regis de Oliveira, uma loja adiante da
Spaghettilândia, ele entrava à direita para ir ao banheiro do McDonald’s.

A porta principal era na Senador Dantas, e pouca gente sabia daquela,
mínima, pela Álvaro Alvim. O McDonald’s fechou também.

Todo o Centro que se conhecia fechou, atrás de pichações, DVDs piratas,
falências, mas os becos continuam abertos aos novos andarilhos.

São o segredo da cidade, o mistério das zonas onde os pesquisadores do
Michelin não colocaram estrelas. Quanto mais se perder neles, mais a salvo
você estará das assombrações cotidianas, protegido pela fortaleza dos
edifícios onde nasceu. Bin Laden tem as cavernas, o carioca tem os becos.
Continue caminhando. O GPS não pega aqui, esquina de Vieira Fazenda com
Manuel de Carvalho, o beco improvável ao lado do Teatro Municipal. Abra suas
asas, bata suas pernas.

Se na contramão vier um cara de jeans preto, camiseta preta e boné preto,
não se assuste. É o Rubem Fonseca inspecionando o esconderijo

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