15/04/2005
Reedição de "Mein Kampf", livro
de Hitler, é objeto de batalhas sobre direito autoral
Editora polonesa quer publicar nova edição, mas
pode infringir direitos autorais. A Bavária, onde Hitler chegou a viver, detém
direitos sobre a obra e está fazendo o possível para protegê-los
Stefan Kruecken
Em
Hamburgo
Todas aquelas cerimônias que foram
organizadas em Auschwitz em janeiro ocorreram exatamente na hora errada para
Marek Skierkovsky. Pouco antes do 60º aniversário da liberação deste campo de
concentração, ele se deu conta de que a sua nova reedição do livro de Hitler,
"Mein Kampf" (Meu Combate) poderia acabar lhe causando uma série de problemas.
Por causa disso, ele decidiu adiar a distribuição dos livros por algumas
semanas.
"Afinal, nós precisamos mostrar um mínimo de respeito", pensou o
editor, sorrindo.
Este polonês de 39 anos costuma sorrir com facilidade,
e a sua pessoa transmite a impressão de ser bastante inofensiva e amigável. A
julgar pelo seu relógio de pulso bastante vistoso e avançado, ele poderia
facilmente ser confundido com um vendedor de carros usados, mas ele insiste que
a sua profissão é de "editor".
Skierkovsky pode não apresentar os sinais
exteriores de que ele exerce legitimamente este negócio --ele não possui nenhum
escritório, nem uma empresa que conste da lista telefônica da cidade polonesa de
Wroclaw, e nem sequer um site na Internet-- mas a sua editora sem nome publica
efetivamente livros.
Por exemplo, um deles é um livro de terror. A arte
da capa traz um monge com os olhos injetados de sangue olhando fixamente para
algum ponto distante.
O editor Marek Skierkovsky também tentou a sorte
publicando livros de receitas, de astrologia, de contos supostamente da autoria
de "Alan Edgar Poe", e até mesmo uma "Bíblia Satânica", que não chegou a se
tornar exatamente um best-seller na Polônia, um país fortemente católico.
Na sua lista de livros publicados, a cereja do bolo é uma antologia de
piadas obscenas, a qual ele tinha certeza que faria sucesso junto a todos os
membros masculinos da liga de boliche local. Mas foi a sua mais recente
tentativa de publicação que causou de longe o maior rebuliço: uma edição com
tradução para o polonês do livro de Adolf Hitler, "Mein Kampf", registrada sob o
número de catalogação ISBN 83-921822-0-0. Ele planejava vender cada exemplar
deste livro de 208 páginas a 29 zlotys (cerca de R$ 24,00).
Contudo,
quando funcionários do ministério das Finanças do Estado da Bavária descobriram,
num noticiário veiculado pela agência Associated Press, que Skierkovsky estava
reeditando este livro, o alarme foi disparado. É claro, eles sempre se mobilizam
toda vez que alguém planeja publicar "Mein Kampf" em algum lugar do planeta.
Isso porque o Estado alemão da Bavária garante ser o detentor dos direitos
autorais sobre o livro de Hitler.
Em função das leis que foram impostas
pela forças de ocupação dos aliados, os bens do dirigente nazista foram
confiscados, e mais tarde transferidos para vários Estados alemães. Adolf
Hitler, que havia aparentemente cometido a negligência de não registrar
oficialmente a sua mudança de residência, primeiro de Munique para o seu refúgio
nos Alpes, a sua fortaleza chamada de "Ninho de Águias", em Obersalzberg, e
depois para Berlim, estava registrado como residente em Munique, a capital da
Bavária.
Uma vez que a editora Eher, que outrora era a editora oficial
principal do Partido Nazista, também tinha o seu escritório registrado em
Munique, é o governo deste Estado que se tornou detentor dos direitos da obra
anti-semita de Hitler, um direito que ele conserva até hoje.
Da Itália
até a Mongólia, os burocratas do governo da Bavária vêm perseguindo
constantemente as tentativas de reedição, e intervindo para impedir a venda
ilegal desta obra incendiária (até hoje, cerca de dez milhões de cópias foram
publicadas no mundo inteiro).
Em certos casos, Edmund Stoiber, o
primeiro-ministro da Bavária, se envolve pessoalmente nesta missão ambiciosa.
Certa vez, quando uma pequena editora tcheca publicou alguns milhares de
exemplares do livro, ele escreveu uma carta ao então presidente tcheca, Vaclav
Havel, pedindo-lhe para tomar as providências cabíveis.
Os bávaros não
exercem nenhuma influência sobre eventuais reedições do livro nem nos Estados
Unidos, nem na Grã-Bretanha, uma vez que outras editoras detêm os direitos
nestes países. Mas, em todos os outros lugares do mundo, eles estão determinados
a barrar as iniciativas dos Marek Skierkovskys da vida.
No mesmo dia em
que a Associated Press publicou a notícia a respeito dos planos de Skierkovsky,
o ministério em Munique enviou um e-mail ao Departamento alemão das Relações
Exteriores, pedindo para que a embaixada da Alemanha em Varsóvia fosse alertada
sobre o caso.
Pouco depois, o ministro das finanças da Bavária, Kurt
Faltlhauser, enviou uma carta ao ministro alemão das Relações Exteriores,
pedindo-lhe para exercer a sua influência no sentido de solucionar o
problema.
Skierkovsky não se recorda exatamente quando foi que ele
encontrou as intimações da polícia na sua caixa postal, mas ele se dirigiu
imediatamente à delegacia de polícia central de Wroclaw. Ele contou aos oficiais
de polícia que ele sempre votou nos social-democratas, que a sua editora era
aquela que tinha publicado aquele famoso livro de piadas, e explicou-lhes que um
amigo judeu lhe havia dito que, em sua opinião, não havia nada errado em
reeditar "Mein Kampf".
Ele foi dispensado depois de uma hora.
Skierkovsky, que fala inglês sem qualquer sotaque, queixa-se de que o
interrogatório policial "foi bastante desagradável", e acrescenta: "Como poderia
eu saber que a Bavária é detentora dos direitos sobre este
livro?".
Embora a publicação de "Mein Kampf" não seja expressamente
proibida na Polônia, o Artigo 256 do código penal polonês estipula uma pena
máxima de dois anos de prisão para toda pessoa que "promove uma forma fascista
de governo".
"'Mein Kampf' precisa ser publicado", insiste Skierkovsky,
"porque existe um mercado para este livro". O mercado ao qual ele se refere não
é o da comunidade dos "skinheads" (militantes violentos da extrema-direita), e
sim o universo dos "inúmeros estudantes" que supostamente entraram em contato
com ele para obter informações sobre o livro, uma vez que eles afirmam estar
precisando dele para as suas pesquisas acadêmicas.
Antes do
desmoronamento do bloco comunista, Skierkovsky estudou línguas estrangeiras e
trabalhou como guia turístico, uma atividade que o levou a viajar pelo mundo
afora, até mesmo para lugares tão distantes como o México e a Tailândia. Mais
tarde, ele tornou-se um importador de vidros coloridos da França e fundou uma
revista mensal dedicada a questões esotéricas. Ele imprimiu um pouco menos de 2
mil cópias de "Mein Kampf", e a sua expectativa é de obter um lucro de cerca de
2 euros (R$ 6,60) por livro.
Skierkovsky transmite a impressão de ser um
homem que não desistiria nem mesmo de continuar vendendo uma edição do diário
pessoal de sua mulher caso ele precisasse do dinheiro para pagar as prestações
do seu carro. "Você já leu Hitler?", pergunta. "É realmente muito enfadonho". E
ele sorri mais uma vez.
Será que ele está preocupado com a perspectiva de
ter de responder pelos seus atos perante algum tribunal num futuro próximo?
"Isso não me incomoda sobremaneira", responde Skierkovsky.
Afinal, diz
ele, um dos meus amigos, um professor aposentado que vive em Varsóvia, redigiu o
prefácio, no qual ele explica claramente que o seu "Mein Kampf" tem qualidade de
fonte científica, e, portanto, que pode proibir tal obra?
A editora
Skierkovsky já está preparando o seu próximo projeto de maior vulto: uma epopéia
sobre as relações de Leonardo da Vinci com os seus gatos, com capa de couro e
detalhes de ouro.
Tradução: Jean-Yves de Neufville