... Vamos começar de situações simples (e óbvias de responder) para chegar 
numa intuição do que seja o cardinal p.

1) Existem famílias infinitas de subconjuntos infinitos do conjunto N dos 
naturais que sejam tais que:

--> qualquer intersecção de uma subfamília finita da família resulta num 
conjunto infinito;

--> porém a família tem intersecção vazia ?

... Isso é fácil de exibir:

A_1 = {1,2,3,...}

A_2 = {2,3,4....}

A_3 = {3,4,5,...}

... A_n = {k: k maior ou igual a n}

A família {A_n: n maior ou igual a 1} satisfaz as duas condições acima.

Porém, se C é um subconjunto infinito e *qualquer* dos naturais, C funciona 
como uma "pseudo-intersecção" da família,
no sentido de estar "quase contido" em todos os elementos da família; essa 
coisa do quase contido é, exatamente,
dizer que C menos A_n é um conjunto finito (para todo n) - i.e., "alll but 
finitely many" dos elementos de C serão, também, elementos de qualquer
um dos A_n.

Uma situação um pouco menos abstrata aparece, por exemplo, na reta. 
Qualquer ponto x é ponto de acumulação de racionais (no sentido de que 
qualquer
intervalinho centrado nesse ponto x contém infinitos racionais). Se fixamos 
uma enumeração dos racionais (lembrar que é enumerável), digamos,

Q = {r_n: n em N}

e fixamos os intervalos abertos ]x - 1/k, x + 1/k[ para k maior ou igual a 
1, podemos criar uma família de subconjuntos dos naturais como acima
da seguinte forma:

A_k = {n em N: r_n pertence a   ]x - 1/k, x + 1/k[   }

Como a intersecção dos intervalinhos se reduz ao ponto, se o número x for 
irracional teremos que essa família {A_k: k maior ou igual a um} é de 
intersecção vazia
porém com certeza tem pseudo-intersecção infinita: basta pegar qualquer 
sequência de racionais que convirja para o ponto x e, voilá, o conjunto dos 
índices A
dessa sequência é uma pseudo-intersecção infinita da família !!! "All but 
finitely many", todos a menos de no máximo finitos elementos de A, vão cair 
dentro de qualquer A_k que você fixar.

Então, a pergunta seguinte seria:

2) Existem famílias infinitas de subconjuntos infinitos do conjunto N dos 
naturais que sejam tais que:

--> qualquer intersecção de uma subfamília finita da família resulta num 
conjunto infinito;

--> porém a família tem NÃO TEM pseudo-intersecção infinita ?

Uma das primeiras coisas que se pode checar é que, se a família de 
subconjuntos infinitos for ENUMERÁVEL, se constrói facilmente
uma pseudo-intersecção infinita para essa família.

Supondo que {A_n: n maior ou igual a 0} seja tal que todas as intersecções 
finitas resultem em conjuntos infinitos, fazemos assim:

a_o = min(A_0)

a_1 = min( (A_0 intersectado com A_1) - {a_0})

a_2 = min( (A_0 intersectado com A_1 intersectado com A_2) - {a_0,a_1} )

...

a_k = min( (A_0 intersectado com A_1 intersectado com... intersectado com 
A_k) - {a_0,a_1,...,a_{k-1}} )

...

O conjunto A = {a_k: k maior ou igual a zero} é uma pseudo-intersecção 
infinita da família. (Quem já fez um curso de espaços
métricos e achou parecido com a construção de uma subsequência convergente 
a um ponto de acumulação de uma sequência, é porque é isso
mesmo, sempre podemos encarar, de certa forma, a pseudo-intersecção 
infinita como uma subsequência convergente).

Bom, enumeráveis não podem ser então... E não-enumeráveis ?

Com um pouco de Axioma da Escolha, tomamos um ultrafiltro livre sobre os 
naturais e ele tem essas duas propriedades: trata-se
de uma família infinita de subconjuntos infinitos dos naturais que é tal 
que toda subfamília finita tem intersecção infinita e não possui
pseudointersecção infinita.

(Pra ver que não tem pseudo-intersecção infinita, tome qualquer A contido 
nos naturais que seja infinito: se o complementar de A estiver no 
ultrafiltro,
ele já não é pseudo-intersecção infinita do ultrafiltro porque A menos 
complementar de A vai dar A que é infinito. E, se A estiver no ultrafiltro 
(lembrando que ou A ou o complementar de A com certeza estão), usamos que 
os ultrafiltros são filtros primos: escrevendo A = A_1 unido com A_2, com 
ambos A_1, A_2 infinitos, sabemos que exatamente UM entre A_1 e A_2 vai 
estar no ultrafiltro livre. Se for A_1, A menos A_1 = A_2, que é infinito, 
se for A_2, A menos A_2 = A_1 que é infinito.)


... Ou seja, do exercício mental acima temos que:

--> Existem famílias de subconjuntos infinitos dos naturais que são tais 
que toda subfamília finita tem intersecção resultando num conjunto 
infinito, porém
não possuem pseudo-intersecção infinita (os ultrafiltros livres são 
exemplos disso);

--> porém, uma família desse tipo não pode ser enumerável.

Aí a pergunta que um teorista de conjuntos faz é:

QUAL É O TAMANHO MÍNIMO DE UMA FAMÍLIA COM ESSAS PROPRIEDADES ?

Pois é, esse é o cardinal p ("pseudointersection number"). É não-enumerável 
porque pra famílias enumeráveis existe a pseudo-intersecção, e limitado 
superiormente pelo contínuo porque é o tamanho de subfamílias de Partes de 
N (logo, em modelos onde vale a Hipótese do Contínuo, ele vale aleph_1 = c, 
mas em muitos modelos podemos ter o p não enumerável e maior do que 
aleph_1, por exemplo em todos os modelos onde vale o Axioma de Martin 
tem-se aleph_1 < p = c). 

Brincando com uma construção topológica, podemos mostrar que

p = menor tamanho das base locais de abertos de um espaço topológico 
qualquer que não seja subsequencial

(subsequencial = pontos de acumulação de uma sequência são limites de uma 
subsequência)

Prova: abaixo de p sempre vai existir a pseudo-intersecção infinita, que 
corresponde à subsequência convergente.
Logo, se as bases locais tem tamanho menor do que p, se consegue sempre a 
subsequência convergente.

Já no p, tome uma família de tamanho mínimo com as tais propriedades 
(intersecções finitas dando infinito, sem pseudo-intersecção 
infinita) e transforme essa família num ponto no infinito com relação aos 
naturais; pra quem conhece os ordinais, imagine que estamos trabalhando
com omega + 1. Considere o espaço Naturais unido com {essa família}, 
declare os pontos naturais como isolados e que as vizinhanças básicas
da família são exatamente os conjuntos da forma {Família} unido A, onde A 
pertence a família. Pronto, esse é um espaço no qual a família
é ponto de acumulação dos naturais mas não tem nenhuma sequência dos 
naturais convergindo pra ela (porque se tivesse, a subsequência
seria pseudo-intersecção infinita, mas no caso aí isso não existe). 

Já o t é o menor tamanho possível para uma torre. Uma torre é uma família 
que tem as mesmas propriedades que as que definem p
(por isso com certeza já se sabia que p menor ou igual a t), porém a torre 
é bem-ordenada pela quase-inclusão estrita reversa, i.e., a cara
básica de uma torre é {T_alpha: alpha < t} onde

T_0 quase contém propriamente T_1 quase contém propriamente T_2 ... quase 
contém propriamente T_alpha ....

(Aí o quase contém propriamente é definido como: X quase contém 
propriamente Y se X menos Y é infinito enquanto que Y menos X é finito).

Quase todo mundo na área (eu inclusive) esperávamos que algum dia alguém 
mostrasse que a desigualdade estrita "p < t" fosse consistente
(isso é uma coisa que o artigo de divulgação não explica bem: uma prova de 
"p < t" não seria nunca uma prova absoluta, com certeza seria uma
prova de consistência porque, por exemplo, sob a Hipótese do Contínuo eles 
necessariamente são iguais).

t é uma espécie de versão muito bem comportada de p (por estar bem ordenado 
pela quase inclusão estrita reversa e tal). Então a diferença entre
eles acaba sendo uma diferença de complexidade, digamos. Foi por aí a prova 
de p = t por Shelah/Malliaris: eles estavam investigando qjuestões
sobre comparação de complexidade entre teorias e... Pimba, acabaram 
chegando no p = t. Como disseram no artigo, "eles provaram p = t numa 
situação em que estavam olhando para outra coisa"...

É um resultado realmente tão divisor de águas que só de ter feito o review 
para o Zentralblatt Math eu fiquei super-emocionado, hehe:

https://zbmath.org/?q=an:06321199

... É isso, atés,  Saludos desde Natal (minicurso sobre ultrafiltros na 
UFRN nesta semana) !!! Escrevi este email com vista ao Morro do Careca...

[]s  Samuel





On Sunday, September 17, 2017 at 9:38:39 AM UTC-3, Samuel Gomes wrote:
>
> Olás, 
>
> Depois eu conto um pouco sobre p e t, no momento estou no celular e não 
> posso escrever muito. 
>
> Só como informação a Malliaris (coautora de Shelah no trabalho) vai estar 
> no Rio ano que vem, como palestrante no Painel de Lógica do Encontro 
> Mundial de Matemáticos. 
>
> Atés 
>
> []s Samuel

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