Pessoas,
Não resisto.
Foi a melhor coisa que vi sobre o Brasil na Copa e
o melhor texto sobre a "revitalização" do Centro, essa reciclagem para um mundo
limpinho que o Andrea Matarazzo quer fazer. Talvez isso condiga mais com a
lista do Integração Sem Posse (coletivo que faz/pensa/cria arte
política). Mas não resisto, mesmo. Preciso compartilhar com vocês, porque me
comoveu.
pati
No Anhangabaú, os sem-pátria,
os sem-sofá, os sem-amigos e os sem-amores pararam para
ver (ou
tentar ver) a
estréia da
seleção de
Parreira na Alemanha
XICO SÁ COLUNISTA DA FOLHA
Amigo
torcedor, amigo
secador, o vale do Anhangabaú,
centrão de SP, se transformou ontem no
jardim dos caminhos
onde se bifurcam todas as
misérias, todas as
solidões dos sem-amores
ou dos sem-amigos, os sem-sofá,
todos os delírios dos
cheira-colas e dos meninos do
crack, todos os
patriotismos dos sem-pátria e sem-patrões, todas as
alegrias clandestinas dos
sem-teto, todas as
frustrações e bolas
perdidas do lumpesinato, o Brasil em
transe, o país
que não consegue
chegar nunca
em casa a
tempo de uma estréia
da Copa, ali estavam
todos os olhares
daqueles que acostumamos chamar,
cá entre
nós, de perdedores. O mendigo
maneta, de camisa
azul-escuro, boné
cinza e cobertor do
tipo Paraíba, não
estava nem aí
para o jogo. Do
seu canto,
não se via o
telão gigante. Os
seus quatro
amigos, aos 10min de
partida, tomaram novos
goles de pinga e se
misturaram à massa.
Fácil acompanhá-los:
além dos tombos, eram
os poucos não
vestidos com
algo verde-amarelo.
Mais um
bando de brasileiros
cinzentos de São Paulo.
Mas cobravam cachê
por entrevista. Esqueci as
regras do jornalismo e
morri com um
trocado para
mais uma garrafa da
branquinha que levava
aquela massa ao
delírio. "José dos
Santos Lino, anota
aí", liberou o primeiro dos
mendigos, um
sem-coisa-alguma mas
também homem
com olhar
ainda altivo. O
cheira-cola atrapalhou o diálogo. Falava
como um Guimarães
Rosa urbanóide, nonada,
não dava para
entender quase uma
palavra. O travesti,
todo borrado de
maquiagem, traduziu
tudo: "Bando de
filho-da-puta perdido, deixa o tiozim [referindo-se
a este cronista] em
paz". E o jogo? Ah,
algumas famílias, na
decência e na estica,
apesar de poucos
cobres a cada
fim de mês, se
portavam com
civilidade nunca
vista. Eram famílias
que se apertam em
quitinetes ali no
centro e famílias
que chegaram de longe
enganadas pela
propaganda oficial do
telão. "Não estou vendo
nada deste canto",
protestava o pai, Alberto Santana de Araújo, 35,
um raro entrevistado
ali naquele transe
bêbado que
não teve trabalho
para pronunciar o próprio
batismo. A mulher,
Ivone, 28, mais agoniada
ainda. Os meninos,
Jonas, 10, Robson, 9, emitiam aqueles
grunhidos infantis de
revolta. Uma
família pobre daquelas
que ainda têm
direito a banho, a uma
roupinha em conta no mercadão do
Brás, um zelo de
mãe e um
pai que
teima, na marra,
em não
deixar a casa
cair por
mais que
tudo desabe. Araújo é garçom numa
lanchonete ali dos
arredores do vale. Ivone faz
faxina também na
área. Estão no time
dos que teimam, na várzea da
vida, para
não cair de
divisão social, a terceirona da
existência. Jogo
que é bom,
quem fosse baixinho,
como a família
decente, só via as
cabeçadas nos
escanteios dos altos
croatas. Por isso
que os homens-gabirus correram
para o alto do
viaduto do Chá, de
onde viam a miragem da
pátria em
chuteiras. Para os perdidos das
ruas ou os
loucos solitários do
centrão, tudo era
festa, o que
quer que fizesse o
milionário escrete canarinho. Do
telão para o chão
dos sem-estrelas tanto fazia. "Num
ganho nada
com isso", berrava
um homem-sanduíche
existencialista, logo
após o gol do Brasil.
Não que os perdedores
na vida fossem
secadores. Ao
contrário. A grande
massa, noves
fora os delirantes
bêbados e cheira-colas, vestia o
manto do patriotismo
verde-amarelo. Ao
fim do jogo, numa
terra de gente
alegre, havia uma torcida
não de tudo
triste, mas
com um
leve olhar de
vira-lata -como os
cães que acompanhavam
os mendigos-, o corpo coçando
com as pulgas da
desconfiança.
|