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Brasil está em terceiro lugar no tráfico de órgãos de
crianças deficientes.
 
Domingo, 8 de julho de 2001
 
Miséria humana transformada em bilhões
O comércio de seres humanos rende de sete a 13 bilhões de dólares por ano”, afirma o juiz Walter Maierovitch, ao apontar os outros braços do crime organizado, em entrevista a José Maria dos Santos

 Lindauro Gomes/AE
"Uma prostituta, para sair da China e entrar nos EUA, custa US$ 25 mil. Como ela vai pagar? Vai ser explorada" Walter Maierovitch

Da sua casa, no bairro de Pinheiros, o juiz Walter Fanganiello Maierovitch, 54 anos, ex-secretário da Secretaria Nacional Anti-Drogas (1998-2000), monitora o movimento do crime organizado em todo o planeta. É que sua casa também é a sede do Instituto Giovanni Falcone de Ciências Criminais, que ele fundou e dirige, ligado à Fundação Falcone, da Itália. Como se sabe, Giovanni Falcone, juiz italiano, foi morto em um atentado praticado pela Máfia em 1992, em represália à sua perseverante e eficiente investigação sobre os mafiosos. Desde então, seu nome tornou-se um símbolo do combate ao crime organizado.

A principal função do instituto é a de denunciar as atividades do crime organizado e esclarecer a sociedade sobre suas formas de atuação. Por isso, está permanentemente ligado a uma vasta rede internacional de instituições e ONGs que trabalham com o mesmo propósito. É natural, portanto, que Maierovitch esteja sempre atualizado a respeito do assunto.

No domingo passado, concedeu uma longa entrevista ao JT falando sobre os bastidores do narcotráfico e as novidades do mercado de drogas – leia-se drogas sintéticas. Hoje, ele aborda outras operações não menos perversas do crime organizado: o comércio de pessoas e de órgãos humanos, da prostituição e sobretudo a exploração da pedofilia.

O instituto criado e dirigido por Maierovitch não tem fins lucrativos e, por restrição estatutária, também não pode operar com dinheiro sob quaisquer condições. Todos os suportes para suas atividades, como viagens e hospedagens para cursos e conferências, publicações, são custeados por parceiros interessados no tema – instituições públicas e particulares. Isso explica porque o instituto funciona na casa de Maierovitch. Ele vive de sua aposentadoria como juiz.

O comércio de gente e de órgãos é um bom negócio?

O comércio de seres humanos rende de US$ 7 bilhões a US$ 13 bilhões por ano.

Qual é a principal fonte de alimentação deste tráfico? É a prostituição?

Não. É a imigração clandestina, esse movimento de pessoas que são obrigadas a fugir de seus países de origem devido à miséria, guerras intestinas ou perseguições étnicas e políticas. A Organização das Nações Unidas detectou um crescimento de 400% nesse mercado nos últimos dez anos. Este movimento desdobra-se em duas situações perversas. A pessoa, pela sua condição de clandestina, que já é ruim, na maioria dos casos precisa de proteção no país para onde foi. Esta proteção é dada por grupos que funcionam no melhor estilo da Máfia. Um migrante da Albânia que entra na Itália ou uma prostituta chinesa que chega aos Estados Unidos serão expulsos se não tiverem a “proteção”. Por outro lado, o grupo mafioso tem seu território de domínio e, para nele entrar e permanecer, o clandestino precisa pagar na maioria das vezes. Inicia-se um processo de escravização.

Dê um exemplo dessa escravização.

Uma prostituta, para sair da China e entrar nos EUA, custa US$ 25 mil. Como ela vai poder pagar essa dívida? Vai ter de trabalhar muito e ser bastante explorada. Nesta prostituição, a mulher nada ganha; quem tem lucro é a organização.

Quais são os números dessa população clandestina?

Hoje, segundo dados internacionais, há 200 milhões de clandestinos no planeta; cerca de 30 milhões de mulheres são escravizadas. É importante lembrar que essas pessoas envelhecem ou vão tendo maior dificuldade para sobreviver. Então são atacadas pelo desespero e engrossam outro mercado perverso, que é o de órgãos humanos. Começam a vender uma córnea, um rim, meio fígado – que é o suficiente para a recuperação de um doente hepático, pois os tecidos do fígado se recompõem. É de se supor que logo haverá uma bolsa de preços de órgãos na Internet, pois existe uma bolsa de drogas que dá os valores da cocaína, heroína e das drogas sintéticas.

Quais são os preços de órgãos?

No mercado internacional, uma córnea vale US$ 4 mil; um rim, US$ 3 mil; meio fígado, US$ 6 mil.

Como os órgãos são recolhidos? Procede a história de que pessoas são seqüestradas, dopadas, operadas e devolvidas sem um dos seus órgãos?

Pessoas mal-informadas pensam que se deve aumentar a vigilância nos aeroportos, imaginando que os traficantes contrabandeam uma córnea ou um rim num recipiente de isopor com gelo. Não é assim que funciona. Recentemente, foi atestado um exemplo de gente que vende seus órgãos voluntariamente, por necessidade. Aconteceu com nove trabalhadores da Moldávia, que ganham o equivalente ao nosso salário mínimo e que venderam um dos seus rins.

E como é feita a extração do órgão?

Segundo as informações disponíveis, com toda a segurança possível. Os “doadores” passam por uma série de exames para identificar a compatibilidade com o receptor; recebem passaporte legal ou falso, passagens aéreas, e são levados para boas clínicas, principalmente na Turquia. Portanto, há dois tipos de vendedores dos seus órgãos: pessoas pressionadas pela miséria e aquelas que estão escravizadas em territórios mafiosos. Mas existe uma terceira vertente, que é mais cruel e desumana: crianças com deficiência mental. De repente, uma criança débil mental desaparece por dez ou 15 dias e depois reaparece com um rim ou uma córnea a menos. Esta questão é tão séria que precipitou a realização do Encontro das Nações Unidas, conhecido como Convenção de Palermo, em dezembro passado. A convenção tratou do crime transnacional sob o prisma de dois protocolos: tráfico de pessoas, englobando tráfico de órgãos, e tráfico de imigrantes. Um terceiro, sobre tráfico de armas, não foi assinado por falta de quórum.

Por que especificamente crianças débeis mentais são atacadas?

Por várias razões. A principal é que a criança deficiente não vai poder localizar a situação no tempo, nem identificar pessoas. Além disso, a própria debilidade mental pode justificar um desaparecimento de dois ou mais dias. A imprensa internacional já noticiou que aconteceram casos de vendas voluntárias de órgãos para atender crianças e, nesses casos, haveria a anuência dos pais da criança deficiente. A Índia coloca-se em primeiro lugar; El Salvador em segundo e o Brasil em terceiro lugar.

Ou seja: retiram os órgãos de crianças para atender outras crianças?

Sim. E, evidentemente, há anuência dos pais. Mas é importante lembrar que estamos tendo avanço no combate a esses horrores. A Itália tem hoje uma lei muito interessante. Quando um imigrante clandestino é apanhado – principalmente se for criança ou prostituta de pouca idade –, não é mais mandado para seu país de origem. Vai para um estabelecimento assistencial do Estado. Por que isso? Além das razões humanitárias – pois, voltando, a pessoa vai invariavelmente continuar no mesmo tipo de vida –, há uma questão prática. Sabendo que vai entrar na legalidade, que terá proteção do Estado e não será deportado, o clandestino aponta as pessoas ou grupos que o exploraram. Assuntos desse tipo ficam absolutamente desconhecidos aqui no Brasil. Daí a importância de instituições como o Instituto Giovanni Falcone para denunciar e combater o crime organizado. Veja a pedofilia: só o mercado de vídeos de crianças rende US$ 280 milhões por ano. Os números são impressionantes.

Como estão os principais números?

No ano passado, foram encontrados 7.650 sites de pedofilia, 50% deles localizados nos EUA. Estima-se que esse número seja dez vezes maior. Uma fotografia de criança nua em cena de pedofilia está valendo dez dólares; se envolver cenas com animais ou de bestialidades, chega a cem dólares. Há cerca de dois milhões de meninos escravizados para desfrute. A Tailândia, que produzia 250 toneladas/ano de heroína, reduziu a produção para 30, porque o turismo sexual, com pacotes para pedófilos, é mais lucrativo. Infelizmente, o Brasil está na lista dos países que atraem os turistas sexuais e pedófilos.

E não há jeito de atacar o problema com rigor?

Na Alemanha, Itália e França, professores já tratam do assunto em aula. Em termos de União Européia, já se fala em ouvidores-familiares. Na Alemanha, há uma rede pública de apoio, formada por psicólogos, educadores e assistentes sociais. O grande problema está dentro da estrutura judiciária: a criança não confirma a acusação, pois a família orienta para que ela não se exponha. Também há o problema de vítimas dentro da própria casa. Há cerca de três semanas, durante a apuração de um caso na Itália em que várias fotografias copiadas de sites foram exibidas, o juiz encarregado deparou-se com a própria filha, de dois anos.

Como isso aconteceu?

Ainda não se sabe quem fotografou. Mas foi gente de dentro. Aliás, na Itália há um serviço, desses tipo 0800, chamado de Telefono Arcobalero (Telefone Arco-Íris), no qual um padre, Fortunato Dilotto, dá orientações e se especializou em identificar sites de pedofilia.

Quantos sites de pedofilia temos no Brasil?

Isso precisa ser apurado. É preciso advertir que no Brasil a prostituição infantil, ironicamente, não é considerada pedofilia. Dizem que muitas vezes não se pode perceber a real idade da prostituta, que é confundida com uma mulher adulta.

Pela extensão do comércio de gente no mundo, parece que, em geral, os órgãos encarregados da sua repressão não fazem o serviço direito.

Vou dar um caso. Na China, o órgão de informações, espionagem e inteligência do governo era dirigido por um general que foi condenado a 15 anos de prisão por estar ligado à “Tríade” de Hong-Kong, que faz tráfico de pessoas.

O que é Tríade?

As organizações chinesas do crime organizado têm o nome de tríade. Há a tríade de Macau, a de Hong-Kong etc. O nome vem do símbolo usado, um triângulo que aponta para o céu, simbolizando a força da energia, que foi herdado da dinastia Manchu. O episódio do general chinês retrata a que nível a situação chegou. Como o Brasil é um paraíso da impunidade, temos o direito de desconfiar que possa haver aqui situações de promiscuidade como aquela. Mas quero antecipar que não estou fazendo qualquer alusão velada ao general Alberto Cardoso, que é um homem íntegro. O crime organizado tem essa capacidade de se infiltrar nas esferas de poder público Aliás, tem o poder de atrair também muitos interesses que, se são legais, podem não ser éticos.

Dê um exemplo

Quando secretário Nacional Antidrogas, percebi um grande interesse de laboratórios da indústria farmacêutica sobre testes químico-toxicológicos nas escolas. Inclusive, uma pesquisa do JT sobre o assunto revelou que a população estava apavorada com o teste. Na verdade, existem outros recursos para verificar se um aluno está usando drogas. Este aluno tem dificuldade de aprendizado, não tem concentração, apresenta comportamento diferenciado. É preciso lembrar que isso não é função das escolas. O fato é que esse projeto continua em pé, com grande desenvolvimento. Imagine as conseqüências de uma obrigatoriedade de teste nas escolas municipais, estaduais etc. Seria mais custoso do que aquele kit de trânsito de triste memória, pois é obrigatoriamente renovável. Mas o mais importante é que projetos dessa natureza são ilegais. Por isso fico espantado com a naturalidade com que se fala desses testes em locais de trabalho.

Por que o senhor diz que esses testes são ilegais?

Eles são inconstitucionais. O que a Constituição determina – mas isso ainda depende de regulamentação (artigo 5.º, inciso 13) – é a possibilidade de testes para atividades que coloquem a população em risco. Por exemplo, o policial de rua, o motorista de ônibus. Essa questão precisa ser discutida abertamente, pois numa época de desemprego como a que vivemos, o teste fica sendo cláusula não-escrita de um contrato eventual de trabalho. Fere o direito à intimidade. Mas vamos voltar ao problema da relação entre poder e crime organizado. Há um exemplo recente no Peru. O país anunciou que tinha erradicado 50% da sua área de plantio de coca. Com a saída de Fujimori, foram descobertas as ligações do seu assessor, Vladimiro Montesinos, com grandes traficantes de armas. Foi também anunciado que a Bolívia reduziu em 70% a área de cultivo de coca. Mas há um aspecto peculiar na Bolívia. Lá, o plantio de coca é dividido em área de cultivo lícito – a coca faz parte da identidade cultural do povo, consumida sob a forma de chá – e do ilícito. Esta última foi de fato reduzida, mas a outra aumentou.

O senhor também falou de tráfico de armas. O crime organizado é um grande guarda-chuva onde cabem drogas, prostituição, tráficos...

Eu comparo a um bolo dividido em fatias. A mais recente dessas fatias é a do tráfico de componentes nucleares. Estima-se que o crime organizado já esteja movimentando 25% do dinheiro circulante no planeta.
 
 
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