19/10/05 - "Eu vou ser contra" - Lya Luft
Ponto de vista: Lya Luft
Revista Veja
19/10/2005
"Podem me crucificar, podem reclamar, mas, se alguns
direitos já andam restringidos, nesse resto de democracia imagino que a gente
possa ao menos tentar se defender, quando o Estado não nos protege, e votar do
jeito que parecer mais sensato".
A pergunta que seremos obrigados a responder nos próximos dias vem
como tantas coisas mais muito malfeita. Presta-se a enganos também porque vem
combinada com campanhas de entregar armas, trocar armas
por brinquedos, por dinheiro, por sabe-se lá que
mais.
Mas o plebiscito sobre armas não quer, na verdade,
saber se somos contra alguém ter arma em casa: quer que
a gente diga se aprova ou não a proibição do comércio de
armas.
Uma leitura benevolente indicaria apenas desinformação
no ato e na forma de realizar o plebiscito. Uma leitura mais cuidadosa nos faz
lembrar regimes ditatoriais do nazismo ao comunismo que tiraram o direito do
cidadão de se defender enquanto armavam polícias políticas e brigadas
populares.
A grande perturbação do senso moral destes tempos,
resultante da contínua afronta a valores mínimos capazes de garantir a
estabilidade social, pode ser um indício de tempos negros à direita, ou à
esquerda.
Obviamente sei que andar armado e reagir a um assalto é
quase sempre decretar a própria morte, neste país onde a violência impera, a
droga predomina e o mau exemplo que vem de cima é assustador, como no caso dos
deputados que a toda hora trocam sopapos no plenário,
tornando a violência algo quase
oficial.
Em lugar de apoiar esse confuso plebiscito, sou a favor
do que não se faz: desarmar os bandidos; liquidar o narcotráfico ou reduzir seu
poder; proibir a propaganda de bebida alcoólica, causadora de boa parte das
mortes por arma de fogo e dos acidentes de trânsito fatais, e
regulamentar severamente sua
venda.
Também é preciso uma real vontade de acabar com a
indecente corrupção por aqui, um terrível desestímulo para o cidadão comum,
sobretudo jovem; resolver o descaso com policiais mal pagos e mal preparados,
além de mal armados para a sua dura tarefa, na qual arriscam e muitas vezes
perdem a vida. E não digam que não há dinheiro, pois sabemos que o problema é o
seu mau uso.
Alardeia-se o desenvolvimento do Brasil; porém, até
setembro, se aplicou na saúde pouco mais de 5% do orçamento do ano destinado à
área: vejo todo dia jovens médicos desempregados e
multidões de doentes desassistidos. Na educação,
aplicou-se cerca de 15% do previsto: escolas são
fechadas, outras deveriam fechar por não
oferecer condições de higiene e
segurança mínimas, por falta de professores ou de material; as universidades
estão decadentes, mas ainda, demagogicamente, se multiplicam pelo país, sem
nenhuma infra-estrutura, às vezes até sem instalações básicas ou
professores.
A falta de horizontes para jovens profissionais é trágica, levando
nossos filhos ao desalento ou a tentar a vida no exterior. Muitos têm sua
adolescência prolongada, não por preguiça ou inépcia, mas porque não conseguem
se afirmar no mercado de trabalho, mesmo com talento, preparo e títulos. Não é por nada
que alguns começam a pensar: é realmente importante ter diploma, competência e
honradez?
Fala-se em deflação, mas no meu bolso sobem as contas
de luz, de telefone, de tudo o mais, sem falar no seguro-saúde, que tem de ser
privado, pois o público assassina doentes nas filas de
espera.
Não quero que a gente propicie aos malfeitores mais
essa facilidade: saber que, estimulados pelo poder público, pais de família,
agricultores, fazendeiros, estudantes, comerciantes, taxistas, todos os que
estão desprotegidos em suas casas ou precisam circular por nossas ruas e
estradas perigosas, foram oficialmente
desarmados.
Podem me crucificar, podem reclamar, mas, se alguns
direitos saúde e educação, segurança e moradia, esclarecimento sobre gastos
públicos e ética nas administrações já andam restringidos, nesse resto de
democracia imagino que a gente possa ao menos tentar se defender, quando o
Estado não nos protege, e votar do jeito que parecer mais sensato.
Lya Luft é
escritora
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