A cultura está refém da renúncia fiscal 
                        Autor: João Bernardo Caldeira - Valor Econômico
14/11/2008
                                                Leia
a seguir entrevista com o Secretário de Incentivo e Fomento à Cultura
do Ministério da Cultura (MinC), Roberto Nascimento.  

Valor:
Hoje, 80% do montante investido pelo MinC advém da renúncia fiscal.
Existe a intenção de tornar o setor menos dependente dessa fonte?  
Roberto
Nascimento: Sim. Essa expansão demasiada do incentivo fiscal é
inadequada na medida em que o direcionamento financeiro é feito pelos
patrocinadores, o que obviamente não atende plenamente às necessidades
da sociedade. A idéia é criar mecanismos mais equilibrados para que
sejam feitas as devidas compensações. Queremos aperfeiçoar os
mecanismos atuais, incorporar instrumentos e fortalecer o próprio
orçamento do MinC. A pasta recebeu neste ano 0,61% do orçamento
federal, número que deve chegar a 0,7% m 2009. Nossa meta é chegar a
1%, conforme sugere a Unesco.  

Valor: Que mecanismos poderiam reverter o quadro atual?  
Nascimento:
Queremos estruturar o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que faz parte da
Lei Rouanet, um mecanismo que deveria ser o predominante. A maior parte
das políticas federais é financiada por meio de fundos setoriais, como
ocorre na educação, na saúde e no audiovisual, e tomamos esse modelo
como referência.  

Valor: O ministro Juca Ferreira se
posicionou contra o que chamou de "farra da renúncia de 100%". A
declaração preocupa o setor, que poderia perder investidores caso os
benefícios sejam menores. O MinC entende que os 100% são desnecessários?  
Nascimento:
No ano passado, por exemplo, do R$ 1 bilhão captado, só R$ 100 milhões
não provinham de renúncia fiscal. Essa relação está desfavorável, já
que a legislação pressupunha uma espécie de parceria público-privada
capaz de alavancar o setor. Precisamos rediscutir a participação do
setor privado no financiamento à cultura. É importante que entendam que
a responsabilidade sociocultural corporativa não pode estar restrita a
uma renúncia de 100%.  

Valor: Mas se a empresa não
puder mais escolher em que projeto investir nem obtiver a renúncia
integral, como evitar a fuga do empresariado?  
Nascimento:
É da natureza do incentivo fiscal envolver a participação das empresas,
portanto elas continuarão podendo escolher os projetos. Mas a
participação do empresariado pode se dar também por meio de doações
incentivadas ao Plano Nacional de Cultura. Além disso, há companhias
que usam o artigo 26 da lei, em que a renúncia é de 30%. São essas
empresas, que investem do próprio bolso os 70% restantes para
viabilizar um projeto, que representam os R$ 100 milhões agregados no
ano passado. Nossa intenção é ampliar a atuação do setor privado
vislumbrando um horizonte em que essa participação seja igualitária.
Teríamos então R$ 900 milhões advindos da renúncia fiscal e outros R$
900 milhões provenientes da iniciativa privada.  

Valor:
No início do ano, causou polêmica a rejeição do MinC ao projeto de
turnê de Maria Bethânia e Omara Portuondo. O ministério alegou que a
bilheteria seria equivalente ao valor pleiteado, mas voltou atrás e
liberou a captação. É justificado, portanto, o temor de alguns
produtores culturais de que iniciativas de cunho comercial passem a ser
preteridas?  
Nascimento: A lei não veda a participação de
iniciativas comerciais. Mas a destinação do recurso federal precisa
estar condicionada a elementos básicos de política pública. Se a União
participa de um projeto, ele no mínimo precisa impactar na redução dos
preços de bilheteria e contribuir na democratização do acesso. As
pessoas hoje desconsideram a participação da bilheteria no
financiamento das suas realizações. Uma peça com 100% dos recursos
incentivados independe de bilheteria.  

Valor: O MinC
mais uma vez pretende aplicar a descentralização de recursos pelo país.
Mas não seria natural uma certa concentração no eixo Rio-São Paulo, as
cidades mais populosas do país e intensas produtoras e consumidoras de
cultura?  
Nascimento: Identificamos verdadeiros desertos
de apoio à cultura, como a Região Norte, que recebe apenas 1% da
captação nacional. A concentração de recursos no Sudeste, que chega a
80%, não tem correspondência com nenhum outro indicador, já que não
participa com 80% do PIB e não corresponde a 80% da população. Se
partirmos da premissa de que essa exclusão perversa é natural, cabe
perguntar se queremos um país que reforça essa desigualdade ou
pressupõe um sentimento de identidade e participação igualitária.  

Valor: Com todas esses desacertos, você diria que a Lei Rouanet representou um 
retrocesso?  
Nascimento:
Se não fosse a lei, não teríamos a valorização da cultura e a
profissionalização que hoje o setor apresenta. Mas entendemos que,
passados 17 anos de sua criação, é natural que seja revista. Ainda mais
uma legislação que define quais setores culturais terão direito à
renúncia de 100%, sem entrar no mérito da qualidade da ação pretendida.
Um projeto de música erudita, por exemplo, recebe 100% de renúncia sem
que sejam avaliados seus possíveis resultados. O Brasil tem uma
diversidade cultural considerável, mas não conseguiu alavancar sua
atividade cultural e a Lei Rouanet se tornou refém da renúncia fiscal
para sobreviver. Se por algum motivo o governo federal resolvesse
descontinuar a prática da renúncia fiscal, seria o fim da cultura.  

Valor:
O MinC reconhece a ineficiência na avaliação dos projetos por causa do
atraso tecnológico e do quadro de funcionários reduzido e despreparado.
Esses problemas de burocracia não poderiam ser resolvidos sem a
necessidade de aguardar a aprovação do novo texto da lei?  
Nascimento:
Com certeza. Estamos implementando mudanças que não estão relacionadas
com a proposta de reformulação da lei. Neste mês, por exemplo,
deveremos lançar o formulário eletrônico de inscrição, em que o próprio
proponente poderá cadastrar seu projeto. A capacitação do quadro de
pareceristas também é um esforço que já está sendo feito. 

Valor: Que outros equívocos da lei você destacaria?  
Nascimento:
Outra distorção grave é a exclusão de uma série de expressões e
linguagens que não têm potencial de agregar valor a uma determinada
marca. O Brasil possui um sítio arqueológico que poucos conhecem, como
o do Parque Nacional da Capivara. Seu valor é inquestionável, mas não
consegue captar recursos por estar no interior do Piauí. É difícil
também achar uma empresa que queira se associar à transgressão
artística e à inovação. Além disso, hoje a população nem sequer
consegue enxergar qual é a participação do governo nas ações culturais,
enquanto a companhia que apresenta uma determinada peça teatral é
facilmente identificada. Parece lógico estabelecer que a exposição da
marca seja proporcional à participação financeira dos envolvidos.  

Valor: Em que prazo podemos esperar que as novas medidas sejam apresentadas?  
Nascimento:
A proposta do MinC já está elaborada e até o fim do mês vamos finalizar
a proposta do Executivo, que envolve a Fazenda, a Casa Civil e o
Planejamento. Nossa expectativa é de que ainda em novembro esteja
disponível a minuta do projeto de lei, que vai ficar sob consulta
pública por 45 dias e depois seguirá para o Congresso, possivelmente em
janeiro.  

Valor: Distorções apontadas na Rouanet
também ocorrem na Lei do Audiovisual, como a centralização das decisões
nas mãos das empresas e a concentração no eixo Rio-São Paulo. Não seria
incoerente modificar uma legislação e deixar a outra como está?  
Nascimento:
Sim, mas estamos nos debruçando sobre um assunto que já demanda
discussões muito amplas. Me parece razoável organizar nossas frentes de
debate uma por vez.
Fonte: http://www.brasilquele.com.br/texto_ler.php?id=4236&secao=11



                        
                                                
                        


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