On Feb  1, 2009, Ricardo Bánffy <rban...@gmail.com> wrote:

> 2009/1/31 Alexandre Oliva <lxol...@fsfla.org>:
>> Igual os habitantes de Cuba, que noutra thread você parecia qualificar
>> como ingênuos felizes.

> Você agora vai comparar um tipo de liberdade com outro?

Certamente.  Ou você vai dizer que cercear uma liberdade fundamental é
certo só porque é uma liberdade menorzinha?

Desrespeitar o próximo pode ser mais ou menos errado, mas é uma
diferença de grau, o sinal é o mesmo.  É -10 comparado a -1, não -5
comparado a +3.

É como eu esclareci no mesmo e-mail:

>> Deixa eu usar uma forma de cerceamento de liberdades ainda mais
>> fundamentais, pra testar esse raciocínio.


> Acha mesmo que dá pra comparar as duas coisas?

Guardando as devidas proporções, claro que dá.

> É como comparar uma amputação com motosserra com uma espinha no nariz.

Uma espinha no nariz acho que é indiscutivelmente algo ruim, mas não
vejo uma questão moral aí.

Já uma amputação com motosserra pode até parecer algo horrível, mas se a
amputação for necessária para salvar a vida da pessoa, e se não houver
recurso mais adequado, pode até ser bom e moralmente correto.

> Sem dúvida, a inclusão de software proprietário é um problema que
> precisa ser resolvido,

+1

> assim como educar a população sobre as vantagens de tê-lo

Onde o 'lo' em 'tê-lo' suponho que se refira a Software Livre, não ao
proprietário, como a frase fez parecer.  Certo?

>>> Muitos usuários de Ubuntu nunca tocam software proprietário.
>> 
>> Impossível.  Ele está lá, nas mídias, e instalado em *todas* as cópias
>> de Ubuntu.

> Qual?

Veja o que o linux-libre remove.  Está tudo lá no Ubuntu.  E ainda corre
o risco de o Ubuntu adicionar mais alguma coisa não-Livre sem avisar.

> mas, acho que de resto, ele é bem livre

Qual a placa de vídeo?  Placas ATI e Matrox têm microcódigo não-Livre
escondido no kernel.

Qual a placa de rede?  Diversas têm firmware não-Livre escondido no
kernel.

Qual o processador?  Processadores Intel normalmente recebem
atualizações de microcódigo não-Livre do sistema operacional (não
incluído no kernel Linux).

Se você pelo menos experimentasse o gNewSense, saberia.  Se tudo
continuasse funcionando normalmente, você poderia continuar usando-o.
Se não, você saberia o quanto você ainda não é Livre.  De um jeito ou de
outro, você sai ganhando.

> Um software livre exceto por um pedaço proprietário que nunca é
> executado ainda pode ser chamado de livre?

Não, né?  Não é só porque você não usa uma funcionalidade do programa
que você ganha a possibilidade de executá-lo para qualquer fim, estudar
seu código fonte, adaptá-lo para que faça o que você quiser, fazer
cópias dele e distribuir pra quem você quiser, melhorá-lo e distribuir
as melhorias pra quem você quiser.

Um litro de leite ao qual foi adicionado menos de 0,1% de material
radioativo ainda pode ser chamado de leite puro? :-)

> Não me lembro de ter sido sequestrado em Estocolmo. Pode ser um
> artifício da minha memória sabidamente imperfeita.

:-)


>>> Ainda assim, é melhor do que vê-los usando coisas piores.

>> Claro.  Nessa lógica, você estaria defendendo o socialismo, por ser,
>> dentro da sua lógica e dos seus argumentos, menos pior que o comunismo.
>> Não importa se é aceitável ou não, basta ser menos pior.

> Não consigo seguir seu raciocínio. Comunismo ser pior do que
> socialismo e como isso tem relação com a questão que eu levantei.

É assim: não é só porque algo é menos pior que é aceitável ou deve ser
defendido ou promovido.  Pode ser menos inaceitável, pode ser mais
desejável que o pior, mas se há algo melhor imediatamente alcançável,
qual o sentido de defender ou promover algo pior?

> Porque até o próximo parágrafo, pelo seu ponto de vista, usar Ubuntu
> parece ser tão ruim quanto usar Windows.

Não é, nunca foi.  Mas está poluído e, pior, corre o risco de acomodar o
usuário no "um pouco mais livre", ou, pior ainda, de não entender o que
é "ser livre", e acabar dando margem pra liberdade ser progressivamente
perdida de novo.  Porque tirar a liberdade toda de uma vez, ninguém
aceita.  Mas, citando o Pedro Rezende de novo (Síndrome de Estocolmo
Digital é dele), quando vão tirando as liberdades um pouquinho de cada
vez, temos a tendência de ir deixando, com o argumento que você usou lá
no começo do e-mail, de que "ah, mas isso não é tão ruim assim", "você
vai comparar essa liberdade com aquela outra?".  Assim como os Sapos
Piramidais, que vão sendo cozidos aos poucos, sem perceber o aumento
gradual da temperatura da panela que vai por fim à sua liberdade última.

>> Que usar Ubuntu é menos pior que usar Windows ou MacOS X, é.  Mas está
>> longe de ser algo bom pra quem usa ou pra sociedade.

> Menos pior pode não ser ideal, mas não vejo como isso possa não ser um
> progresso.

É progresso.  Mas precisa tomar cuidado pra não se acomodar ali.  Pra
não divulgar como o supra sumo, pra que quem já está à frente no caminho
pra liberdade não dê passo pra trás.  Pra que ninguém que estava bem
mais longe ache que já chegou no destino final e pare de avançar.  É aí
que mora o perigo de apresentar o menos pior como se fosse solução, ao
invés de como um compromisso que, embora melhor, ainda é inaceitável e
indesejável.  O que fica ainda mais chato quando existe alternativa
ainda melhor, ainda por cima aceitável e desejável.

> Para usar analogias tão boas como as suas, seria como adiar a entrega
> de ajuda humanitária, digamos a uma população faminta até que fosse
> possível oferecer três refeições diárias.

É mais ou menos como "pô, a gente já dá três refeições por *semana* pra
esse pessoal, antes eles só tinham duas, já não tá bom?"

Não, não tá.  Tá longe de estar bom.  Que ótimo que eles agora têm uma
refeição a mais, a gente já comemorou que conseguiu isso.  Agora que tal
a gente parar de rejeitar essa contribuição que lhes permitiria ter duas
refeições por dia?

> De novo. Talvez você tenha mais sucesso com analogias com automóveis.

Estava só usando argumentos que você apresentou.  Se quiser apresentar
argumentos sobre automóveis em que você acredite, posso tentar
encaixá-los na discussão depois, pra ajudá-lo a ver as coisas das quais
você aparentemente discorda sob outro ponto de vista.

> Eu não acho que usando Ubuntu eu esteja oprimindo alguém, estou?

Não diretamente.  Você está mais pra vítima, mas nem por isso suas ações
não causam danos a mais ninguém.  Dá uma olhada nisso aqui:

http://fsfla.org/blogs/lxo/draft/flisol-libre-2008


Quando você dá preferência a Ubuntu sobre gNewSense, e o faz em público,
está induzindo outras pessoas a fazerem a mesma opção.

Mesmo que você tenha decidido usar Ubuntu só pra fazer o seu hardware
atual funcionar, mas já planeje migrar pra Software Livre no seu próximo
computador, outros podem não entender essas razões, e achar que Ubuntu é
realmente superior.

Ou, se você se acomoda com hardware que não é compatível com Software
Livre, e vai de Ubuntu pra que ele funcione, você está oferecendo
reforço positivo não só à atitude do Ubuntu, de incluir software
prejudicial aos usuários, mas também mandando dinheiro pros fabricantes
de hardware que não respeitam nem você nem os outros.

Com mais dinheiro e com a aprovação que você dá e induz outros a darem,
vão fazer mais disso, não menos.

Então, embora você não esteja diretamente oprimindo ninguém, está se
tornando cúmplice dos opressores, conquanto lhes dá mais poder e lhes
arranja novas vítimas.  Sua liberdade vai só até onde começa a do outro,
lembra?

>> Qual o wireless que não faz WPA2 quando você usa só Software Livre?

> prism2

Uau!  Fora WPA2, o resto funciona?  Não sabia disso.

> Por bastante tempo, nem WEP ela fazia.

Evolução de compatibilidade dos drivers/firmwares livres, ou o quê?

>>> Fundamentalismo não vai nos levar muito longe.
>> 
>> Ãrrã.  Afinal, estaríamos no mesmo lugar mesmo que alguém de princípios
>> (que é o que você quer dizer quando escreve fundamentalista, uma vez que
>> se tire a conotação negativa pretendida) houvesse dado ouvidos aos
>> conformistas, certo?

> Errado. Quando Stallman começou o projeto não havia um kernel livre

De fato, não havia praticamente nada de Software Livre.

> ainda assim, as ferramentas GNU podiam ser usadas em outros sistemas
> operacionais.

O único caso em que começar a utilizar Software não-Livre é socialmente
(moralmente) aceitável é para criar um substituto Livre, pois vai por
fim ao mal.  Assim se construiu o sistema GNU: substituindo os
componentes não-Livres do Unix, um por um.

> É "menos pior" usar gcc em Windows do que o compilador MS.
> É menos pior usar as ferramentas GNU em HP-UX do que usar seus
> contrapates AT&T.

Sem dúvida.  Mas isso não torna o Windows moralmente aceitável.  É como
passar de 2 para 3 refeições por semana.  É menos pior, mas tá longe de
ser certo.

> Não é o ideal, mas até mesmo Stallman parece mais
> pragmático do que você nessa questão.

Que eu saiba, ele e eu estamos em pleno acordo nessa questão.

>> Se não houvesse deixado o emprego no MIT pra criar
>> o sistema operacional Livre que tanta gente usa hoje, ainda que com
>> outro nome.

> Ele criou uma parte do sistema operacional que muita gente usa. Parte
> importante, viabilizadora, mas não superestime a importância de um
> indivíduo em uma questão muito maior.

Foi a decisão, baseada em princípios, e seguida até hoje sem comprometer
os princípios, que nos permitiu ter o que temos hoje, ainda que uma
porção de gente que não compartilha dos princípios tenha conseguido
colocar uma peça final no quebra-cabeça e tomado todo o crédito para si.

> A menos que existam muito mais usuários do Hurd do que eu saiba.

Hurd é só um kernel, assim como Linux.  O resto do sistema GNU tá lá,
sendo usado juntamente com o Linux e, pior, sendo *confundido* com
Linux.

> Vítima de síndrome de Estocolmo, escravagista... Faltou algum adjetivo
> pra você me tentar me ofender?

Algum motivo pra você achar que eu estou tentando ofender você?

Síndrome de Estocolmo é uma resposta psicológica normal, não há demérito
nem ofensa aí.

Escravagista, não acho que você seja, mas talvez não tenha atentado para
algumas semelhanças entre a luta contra a escravidão e a luta contra a
escravidão digital.  Sem dúvida há uma diferença de grau, o que pode
confundir as coisas.  Mas não é diferente na essência.

Curioso você não mencionar 'socialista' ou 'fascista' na sua lista de
termos supostamente ofensivos supostamente atribuídos a você.  Esses são
dois que, se você seguisse a mesma lógica de aceitar o Ubuntu como
solução de compromisso menos pior, você defenderia da mesma maneira.
Mas não consigo ver você defendendo nenhum dos dois.  Por isso me causa
surpresa você ter percebido que esses dois não se tratavam de ofensa a
você, coisa que não ocorreu com os demais.  Por que a diferença?

{}s,

-- 
Alexandre Oliva           http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/
You must be the change you wish to see in the world. -- Gandhi
Be Free! -- http://FSFLA.org/   FSF Latin America board member
Free Software Evangelist      Red Hat Brazil Compiler Engineer
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