Unimecafy: um conto GNU
Ricardo era uma criança especial. Ele percebia as coisas de uma forma diferente. Nem
todos entendiam o que ele dizia e ele, quase nunca, entendia o que os demais queriam
dizer. - Como é isso de "querer dizer"? Por que não dizem as coisas claramente?
Perguntava Ricardo para sua mamãe. Com a paciência que só as mães tem, ela sempre lhe
dizia o mesmo - As pessoas tem medo de serem rejeitadas e por isso insinuam mais do que
falam, pois falar as coisas exatamente como são, termina por magoar os demais. Ricardo
sempre fingia entender, mas essa explicação nunca foi satisfatória. Ricardo, então,
continuava a ser direto e objetivo na sua honestidade, afastando as pessoas, mas
acreditando cada vez mais que a verdade e o bem sempre prevaleceriam.
Como toda criança Ricardo adorava brincar com seus carrinhos e bonecos, vídeo
games e bolas, bicicleta e jogar pião. Mas seu favorito sempre foi o Lego. A
possibilidade de libertar a imaginação ligando os bloquinhos de plástico era
indescritível! - Olha mamãe, juntei todas as peças que tenho e fiz esse carro
com 22 rodas, 19 portas, um elevador, todos os bonecos, cavalinhos e até uma
árvore no topo! Ricardo era o orgulho de seus pais.
Ricardo cresceu um pouco e seu pai lhe presenteou com um outro tipo de
brinquedo de montar: Unimecafy. Este tinha parafusos, porcas, roldanas, cubos,
conectores, rodas e placas perfuradas para que tudo isso pudesse ser
interconectado. - Que irado! Isso sim é algo que pode levar minha imaginação a
um nível muito mais avançado! Pensou Ricardo. E assim, sem perder, tempo, ele
começou a bolar as coisas mais estranhas e fantásticas com as novas peças. O
que mantinha tudo junto eram os parafusos e para apertá-los ele precisava usar
a chave de fenda que veio no brinquedo. Esta não era uma chave de fenda comum,
pois ela tinha ranhuras específicas que se encaixavam nos parafusos, que também
não eram comuns.
Ir à escola, fazer os deveres, estudar, comer, o Lego e todo o resto perderam a
graça. Havia uma vontade enorme de usar o Unimecafy para criar ferramentas que
ajudassem em seu dia a dia. Ricardo fez um passador de páginas do seu livro,
uma escala para aumentar o tamanho de um desenho, um apoio giratório para seu
Globo e muitas outras coisas superúteis. - Serei um inventor! E poderei ajudar
as pessoas com minhas fantásticas invenções. Confessou Ricardo ao seu pai.
Um dia Ricardo descobriu que seu amigo Alan também tinha ganho um Unimecafy e o
convidou para brincarem juntos. Quando Alan chegou com sua caixa de peças,
ambos pensaram a mesma coisa e falaram juntos: - vamos juntar todas as nossas
peças! Vamos construir a maior de todas as invenções! Então limparam um canto
do quarto, despejaram todas as peças juntas e colocaram a mão na massa. Em
poucos minutos eles já estavam imaginando o tamanho, forma e peças que
precisariam para fazer o fantástico escorregador de bolas de gude. E começaram
a separar as partes que precisariam. Ricardo fez a base bem sólida, enquanto
Alan fez os trilhos por onde as bolas iam passar. Agora só faltava juntar e
fixar bem as partes.
Ele tentaram juntá-las colocando uma sobre a outra mas as duas partes não
encaixavam. Ele perceberam que a furação das placas perfuradas eram diferentes!
E não era só isso os parafusos e as chaves de fenda eram diferentes também. -
Ricardo, acho que não vamos conseguir encaixar isso. Disse Alan. - Mas temos
que conseguir, afinal o seu é um Unimecafy e o meu também é! Não pode ser!
Então com suas caixas de Unimecafy, Ricardo e Alan foram falar com o pai de
Ricardo para tentar entender o que havia de errado.
- Papai, Alan e eu estamos tentando juntar estas partes de nossos Unimecafys e
não estamos conseguindo. Você pode nos ajudar? Disse Ricardo
- Deixe-me dar uma olhada nessas partes. Hummm, interessante, isso é um
escorrego de bolas de gude, certo? Comentou o Pai.
- Sim, estivemos trabalhando nisso por algumas horas, essa parte na sua mão
esquerda é a base e na direita o trilho. Interveio Alan.
- Olha, deve ter algo errado, veja os buracos das placas da base feita com meu
Unimecafy não encaixam com os buracos das placas dos trilhos feitos com o
Unimecafy de Alan! Explicou Ricardo
- Isso não faz muito sentido. Comentou o Pai. - Mas eu tenho uma ideia. Vamos
ler o manual de instruções.
Na capa do manual, em letras enormes estava escrito: "O Unimecafy foi desenhado para
lhe prover uma experiência única. Use sua imaginação para criar tudo o que quiser!"
- Isso é promissor, pensou o Pai. Então ele continuou lendo e procurando por uma
explicação. Passou pela sessão de descrição das partes, do funcionamento do brinquedo, do
uso correto da chave de fenda, dos cuidados com o manuseio, da garantia e da assistência
técnica autorizada. Na última página, ele encontrou o que buscava.
"O Unimecafy foi feito para ser utilizado apenas pela pessoa que pagou pelo direito
de usá-lo. Não é permitido o compartilhamento de suas partes e componentes com mais
ninguém. A única forma de garantir o uso exclusivo pelo seu portador, é fazer peças
diferentes que não possam ser encaixadas com outros Unimecafys."
- Entendeu Ricardo? Esse é um brinquedo para brincar sozinho. Disse o Pai
depois de ler.
- Mas pai! Assim não é divertido, não é legal! Reclamou Ricardo
- Verdade tio! Assim não dá! Apoiou Alan
- É assim que as coisas são meu filho. Assunto encerrado. Agora me deixem ler o
jornal. Finalizou o Pai.
Alan ficou tão desapontado que arrumou seu Unimecafy e foi para casa. Ricardo
não conseguia aceitar a sentença de que as coisas são assim. Ele sabia que
tinha que fazer algo para conseguir encaixar as peças dos Unimecafys. Como
seria possível aceitar que todas as crianças do mundo não podiam brincar juntas
com seus Unimecafys? Porque seu brinquedo favorito não era compatível com os
demais? Como juntar todas as invenções maravilhosas de todas as crianças se os
Unimecafys não poderiam ser interligados? Pensando nisso, o sono foi maior, e
ele adormeceu.
Em seus sonhos havia um grande espírito que lhe dizia: - Você pode encontrar
uma solução! Este é o seu destino! Você poderá libertar todos os Unimecafys! -
Como? Como? Ecoava a sua voz no sonho. E o espírito lhe disse o que ele já
tinha percebido - Crie um Unimecafy livre, onde todas as peças se encaixem, e
ensine as outras crianças a como fazer isso elas mesmas!
Na manhã seguinte Ricardo sabia exatamente o que tinha que fazer: criar seu
próprio conjunto de peças, placas, parafusos e chaves de fenda. E não só isso,
mas contar para todas as demais crianças como fazer o mesmo. As crianças e ele
mesmo poderiam, finalmente, juntar suas imaginações, juntar as suas ideias e
juntar suas peças!
Durante muito tempo ele desenhou cada uma das peças, cada um dos parafusos,
cada uma das placas perfuradas e escreveu um manual de como fazê-las. Então
mostrou todo o conjunto ao seu amigo Alan e juntos eles melhoraram ainda mais
os desenhos e o manual. E agora juntos decidiram mostrar tudo para todos os
amigos da escola, do bairro, do clube, da igreja e de todos os lugares onde
iam. E cada dia, mais e mais crianças da sua cidade conseguiam fazer, criar e
usar seus próprios Unimecafys livres, que se encaixavam uns com os outros. Em
seguida, crianças de todo o país souberam da novidade e não demorou muito para
que o Mundo inteiro soubesse e quisesse fazer parte disso. Então todas as
sugestões foram levadas em conta e as peças foram ficando cada vez melhores e
mais divertidas.
Quando um canal de TV decidiu fazer uma entrevista com Ricardo para entender o
porquê, ele disse: - porque eu sou uma criança e sei que nenhuma criança pode
ter sua imaginação presa por muito tempo. Todos temos o direito de compartilhar
nossas ideias e dividir nossas conquistas.
Ele havia sido objetivo e honesto como sempre e o entrevistador não entendeu
muito bem. Mas os fabricantes do Unimecafy entenderam e perceberam que Ricardo
estava completamente certo. Desse dia em diante eles só fabricaram peças que
podiam se conectar umas as outras e inclusive às peças, parafusos e chaves de
fenda feitas por Ricardo, Alan e todos os demais colaboradores do mundo inteiro.