Oi

"E ninguém administra nada, ninguém é competente em nada daquilo a que
está ligado, ninguém sabe nada, a impressão é de um viveiro de baratas
tontas semitartamudas ou arrogantes."
...

Diário do Nordeste
COLUNA (29/7/2007)


João Ubaldo Ribeiro - Esculhambação


Tive de enfrentar um certo trauma de infância, para conseguir usar o
título acima. Sou do tempo em que essa palavra era chula mesmo e, como
diz o Houaiss, tabuísmo. Menino que a pronunciasse na frente de senhoras
estava arriscado a ter a boca lavada com sabão. Agora se escreve e
publica em jornal praticamente qualquer coisa e ela já faz parte do
vocabulário cotidiano. Assim mesmo, sou obrigado a evitar os olhares de
reprovação dos fantasmas de meu pai e meu avô, ambos eméritos xingadores
de jornal, mas xingadores finos, que raspavam palavrões polissilábicos
em textos barrocos e nunca escreveriam nada com o título que escolhi hoje.

Mas, honestamente, que outra palavra pode ser usada para a sensação que
nos acomete, diante do que vem sucedendo no Brasil? Só esculhambação
mesmo. Desgoverno também, mas desgoverno é pouco, esculhambação é mais
plurívoca, mais conotativa, mais colorida. Acho que basta qualquer um
ligar a tevê para ver o noticiário ou abrir o jornal e a sensação de
esculhambação é avassaladora, nos engolfa por todos os lados.

O pavoroso desastre de Congonhas: cada dia uma coisa, ninguém sabe de
nada. O governo, em vez de interessar-se genuinamente pela tragédia,
resolve concentrar-se na preservação da própria imagem. Aí a gente vai
ver as notícias e os responsáveis por órgãos envolvidos com o tráfego
aéreo estão sendo condecorados por serviços prestados à aviação. Quer
dizer, uma pessoa desesperada com a perda de parentes ou amigos pensa
que pelo menos o governo deve tomar alguma providência, ainda que
tardia, e o que vê é a condecoração. Como puderam ter a insensibilidade
de fazer isso? A não ser que o ´relaxe e goze´ tenha sido mesmo uma
palavra de ordem, ou a atitude geral dos governantes para conosco seja
mesmo resumível nesse deboche.

A esculhambação, nas companhias que desprezam o viajante e no governo
que as fiscaliza, já tinha brilhado assim que se teve notícia do
desastre. Pois o presidente da república, que por acaso se encontrava no
país, não sumiu por três dias, num gesto de pusilanimidade, grossura e
falta de grandeza para o cargo? Enquanto desastres bem menores, sob
chefes de Estado e governo conscientes de suas obrigações morais e
políticas, levam aos atingidos as visitas pessoais de reis, rainhas,
primeiros-ministros, ministros, primeiras-damas e assim por diante, aqui
todo mundo, a começar pelo presidente, se escondeu.

Não há nada que justifique isso. Segundo tenho ouvido comentar, o
principal fator foi o medo de vaias. Nosso líder, nosso guia, o
presidente de todos os brasileiros, não cumpre seu dever moral de estar
presente e à frente nos momentos difíceis vividos pelo país porque tem
medo de vaias. Não pode ser, não acredito - mas que outra razão ele
teria? E já li nos jornais que, na semana que passou, entre ir a lugares
onde poderia receber as ingratas vaias e a outros onde o Bolsa-Família o
escuda, dá exclusividade a estes últimos.

Que coisa, os lugares onde ele é vaiado não devem pertencer à realidade.
A realidade é outra, é a do aplauso. Agora me ocorre que, no vasto e
doce jardim de mordomias trazido pelo poder, está, tradicionalmente e em
importante posição, a possibilidade de, se a realidade for desagradável
ao governante, trocar-se a realidade. Dizem que, quando Catarina da
Rússia viajava pelo seu vastíssimo império, auxiliares construiam
cidades prósperas - cenográficas, por assim dizer - para ela ver em sua
passagem e dessa forma não ter idéia da desagradável miséria de muitas
daquelas regiões. Semelhantemente, o presidente escolhe a realidade
nacional a que prefere ser exposto. Junto a este o argumento de que esse
negócio de crise aérea só interessa a barão que viaja de avião e não ao
povo mesmo, alegação que já ouvi vociferada por admiradores do governo.
E pronto, está tudo certo, Deus tenha piedade de nós.

Ouvimos as mais desvairadas versões sobre o que aconteceu e as medidas
que foram ou serão tomadas. A única coisa de que se tem certeza, segundo
depreendo do que venho lendo, é que as passagens aumentarão de preço. É
uma mudança, não se pode negar. Contam-nos que os órgãos criados para
administrar a aviação civil são frondosos cabides de empregos, onde
pouca gente sabe falar mais sobre um avião do que ´ele tem asas´, assim
como há cabides de empregos em toda parte, todo mundo ´colocado´ e
ninguém sabendo fazer nada. A capacitação é requisito suntuário ou
inexistente, nesta administração.

Administração é modo de dizer, pois, a começar pelo presidente, ninguém
no governo sabe administrar. Administrar é viajar, discursar e ser
ovacionado, parece pensar o presidente de um governo que vive mais de
reagir do que de agir e que, tudo bem avaliado, não fez foi nada até
agora, além do que estamos vendo aí. E ninguém administra nada, ninguém
é competente em nada daquilo a que está ligado, ninguém sabe nada, a
impressão é de um viveiro de baratas tontas semitartamudas ou
arrogantes. Estamos testemunhando o apagão aéreo - tudo bem, coisa da
repulsiva classe média, não interessa verdadeiramente ao povo que
aplaude. Mas será que ficaremos por aí?

Não custa lembrar um dos poetas mais populares do Brasil, Augusto dos
Anjos, e um de seus versos mais conhecidos: ´a mão que afaga é a mesma
que apedreja´. Porque, pelo arrastar-se da carruagem e pela aceleração
quelônia do PAC, pode-se ter uma razoável expectativa do apagão
rodoviário, do apagão portuário, do apagão da saúde, do apagão da
educação etc. Está tudo acontecendo, só não vê quem não olha. E, como
apoteose, o apagão literal, um apagão de energia lá para 2010 ou até
antes. É, talvez venha a ser difícil, em futuro relativamente próximo,
achar lugar para se esconder, muito menos das vaias. Se bem que a
escuridão, inclusive a do apagão mental, ajude bastante.


Retirado de
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=456339


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