Revista de História da Biblioteca Nacional
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No balanço malicioso do lundu
Tereza Virginia de Almeida é doutora em letras pela PUC-RJ, com pós-doutorado 
em literatura comparada pela Universidade de Stanford (EUA), e professora de 
literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

O gênero musical que influenciou o samba abordou com graça e humor um tema 
tabu: os jogos de sedução entre o negro escravo e suas sinhazinhas 
Tereza Virginia de Almeida

18/9/2007 
"Eu tenho uma nhanhazinha/ De quem sou sempre moleque/ Ela vê-me estar ardendo/ 
E não me abana c'o leque." Esta é a letra de um antigo lundu, gênero musical 
que estudiosos apontam como o avô do samba. Outra composição diz o seguinte: 
"Se sinhá quer me dar/ eu cá estou pra apanhar/ vem ferir vem matar/ teu 
negrinho aqui está/ mas depois de apanhar/ quer fadar com iaiá". Os versos, 
como se vê, revelam uma curiosa mistura de valores antagônicos: sadismo e 
amorosidade, violência e desejo.

No segundo lundu, o negro propõe à sua senhora um pacto através do qual sua 
posição de subserviência e inferioridade como escravo se atenua no momento em 
que revela seu interesse final de "fadar", expressão que remete à dança do 
fado, mas que também pode ter conotação sexual. A violência da escravidão é ao 
mesmo tempo suavizada pelo discurso amoroso, transformando o maltratado em 
cúmplice do próprio algoz. O negro aqui não apanha de forma passiva. Ele 
provoca e, com isso, é capaz de revelar o percurso que vai da dor ao prazer, de 
seduzido a sedutor.

Esse gênero musical tem uma longa história entre nós. A primeira música gravada 
no Brasil, em 1902, foi o lundu Isto é bom, de autoria de Xisto Bahia 
(1841-94), interpretado pelo cantor Baiano (1870-1944). A essa altura, o lundu 
já se havia popularizado como atração humorística, executada ao violão pelos 
palhaços de circo. Na segunda metade do século XIX, ou seja, algumas décadas 
antes do advento da indústria fonográfica, o lundu já exercera, também, papel 
importante no teatro de revista, gênero dramático que acabou por incorporar 
personagens, tipos e criações musicais relacionados às camadas populares.

O lundu é, no entanto, mais antigo que isso. Sua origem remonta ao século 
XVIII, quando passou a fazer sucesso tanto no Brasil quanto em Portugal, 
paralelamente à difusão das modinhas. O termo lundu, entretanto, surge apenas 
no século XIX, mais especificamente a partir de 1834, quando se inicia a 
impressão musical no Brasil. A partir do comércio de partituras, surge a 
demanda pela diferenciação de gêneros na própria música brasileira, e o lundu 
aparece para designar canções com características bastante definidas e 
reconhecidas por compositores, editores e público.

Além da malícia e da sensualidade, já presentes em algumas modinhas, o lundu se 
distingue por expressar-se através do ritmo sincopado, originário da cultura 
africana, e pelo tom humorístico das letras. Ao longo do período que vai da 
segunda metade do século XVIII ao início do século XX, passou por 
transformações significativas no que diz respeito à temática. A princípio, o 
gênero se distinguia por unir o humor a referências ao universo 
afro-brasileiro. Nos lundus gravados no início do século XX, entretanto, o que 
se apresenta são textos humorísticos de assuntos variados. 

Segundo o pesquisador José Ramos Tinhorão, a palavra lundu tem sua origem em 
calundu, dança ritual africana às vezes também chamada de lundu. O termo está, 
portanto, relacionado aos batuques dos negros, e é compreendido inicialmente 
como dança: uma combinação entre a umbigada africana e o fandango europeu.  Mas 
logo o ritmo da dança vai dar origem ao lundu-canção. Este gênero deve sua 
difusão em Portugal ao poeta Domingos Caldas Barbosa, que o tornou popular na 
metrópole quando foi estudar na Universidade de Coimbra, em 1763.

Filho de um português com sua escrava trazida de Angola, o poeta, nascido em 
1740, passou a infância no Rio de Janeiro como um dos inúmeros mestiços de uma 
população que assistia aos processos de modernização e à emergência de novas 
formas de divertimento no espaço urbano. Embora tenha sido Domingos Caldas o 
divulgador do lundu em Portugal, não é possível afirmar que todas as canções 
que tocava com sua viola de arame eram de sua autoria. Há a hipótese de que o 
poeta as tenha recolhido no Brasil nas diversas manifestações de cunho popular.

Domingos Caldas Barbosa foi um dos fundadores da Nova Arcádia, em Lisboa, no 
ano de 1790.  No primeiro volume de sua obra Viola de Lereno, o poeta se 
apresenta como o pastor Lereno Selinuntino. Caldas é, portanto, um dos 
representantes da estética árcade, estilo literário predominante na segunda 
metade do século XVIII que contrasta inteiramente com os lundus que apresenta. 
Enquanto o arcadismo (ou neoclassicismo) se inspirava na lendária região da 
Grécia Antiga dominada pelo deus Pari e habitada por pastores, os lundus 
encenados por Domingos Caldas traziam elementos da cultura brasileira. Consta 
que, nos próprios encontros da Nova Arcádia, o tocador de viola comportava-se 
de forma transgressora, ao cantar os maliciosos lundus após a leitura das peças 
compostas dentro dos rigores neoclássicos. Em função disso, no segundo volume 
de Viola de Lereno, publicado 26 anos após a morte do poeta, desaparece o 
pastor e surge a figura do negrinho ou moleque.

Há singularidades nos lundus do final do século XVIII, principalmente naqueles 
atribuídos a Domingos Caldas, que merecem atenção especial no que diz respeito 
às letras. Estas colocam em cena aquele tipo de escravo que se dirige à sua 
senhora chamando-a carinhosamente de "sinhá", "nhanhá' ou  "iaiá".

O primeiro aspecto que pode ser percebido diz respeito ao caráter ilícito da 
relação encenada pelo lundu, bem como à desigualdade entre os amantes, já que 
os personagens envolvidos são o cativo e sua ama. O lundu é, portanto, uma 
forma de canção que traz  para o centro da atenção da metrópole portuguesa e da 
Colônia o negro escravo, que subverte e desafia a rigidez dos valores sociais 
vigentes. Isso através de um discurso amoroso que, ao desviar-se do discurso 
presente nas modinhas, reelabora elementos advindos da própria cultura 
escravocrata.

Ressalte-se, em primeiro lugar, que as relações entre senhores e escravas são 
amplamente documentadas devido, sobretudo, aos inúmeros nascimentos de filhos 
de negras oriundos desses relacionamentos. Entretanto, pouco se registra das 
relações entre as senhoras, donzelas ou casadas, com seus escravos. E é 
justamente essa forma de contato que predomina nos lundus do século XVIII, 
através do discurso negro masculino. Nesse sentido, o lundu pode ser 
interpretado como a evidência de um aspecto censurado da cultura colonial.

Mas há mais: em alguns casos, bastante significativos, o lundu coloca em cena 
um jogo de sedução entre negro e senhora em que a temática da violência surge 
de forma bastante marcante. No segundo volume de Viola de Lereno, de Domingos 
Caldas, apresentam-se estrofes tais como "Eu tenho uma nhanhazinha/ Que eu não 
a posso entender/ Depois de me ver penar/ Só depois diz que me quer". 
Registra-se aqui o uso do diminutivo no tratamento à senhora, carinhosamente 
coloquial e que, por si só, demarca um campo de intimidade que subverte a 
relação de poder. Mas, ao mesmo tempo, o interesse da senhora é apresentado 
como algo ambivalente, do qual participam simultaneamente desejo e sadismo.

O lundu no século XVIII pode, portanto, ser visto como uma cantoria que permite 
vir à tona a temática da violência da escravidão escamoteada pela superfície do 
discurso amoroso, da linguagem dengosa e da leveza marcada por uma forma de 
humor acentuada pelas rimas. Há uma constante ambivalência entre um sofrimento 
vivenciado em função da falta de reciprocidade amorosa e a dor causada pela 
própria condição de escravo. Ambivalência que vai sendo sublinhada ao fim de 
cada estrofe em que o negro repete o refrão: "Ai céu!/ Ela é minha iaiá/ O seu 
moleque sou eu".  

O lundu não coloca em cena apenas relações entre negros e senhoras, mas 
estabelece um jogo de sedução com os públicos português e brasileiro que têm no 
humor, na jocosidade, uma forma de lidar com a problemática da escravidão. É 
pelo viés da temática amorosa, já familiar através da modinha, à qual se 
acrescenta o humor como ingrediente, que a platéia pode entrar em contato com 
uma ambivalência que reside tanto na amorosidade encenada quanto em sua própria 
relação com a realidade escravocrata.  

Na coletânea As modinhas do Brasil - pertencente ao acervo da Biblioteca da 
Ajuda, de Lisboa, e revelada ao público em 1968 pelo pesquisador Géhard Behágue 
- encontra-se outra canção em que a união entre sedução e violência adquire 
novas nuanças. Trata-se de Os me deixas que tu dás em que o negro diz à 
senhora: "Muito gosto nhanhazinha /de andar bulindo contigo/ quando vejo que 
comigo/ tu estás enfadadinha/ ficas tão muganguerinha/ que muito me satisfaz/ e 
se mando que te vás/ depois te torno a prender/ é somente para ver/ os me 
deixas que tu dás".

Este lundu parece colocar no centro da atenção a fragilidade feminina da 
senhora, de forma que se dá uma total inversão na relação de poder. É o desejo 
do negro que se sobrepõe ao de "nhanhazinha". O negro explicita a rejeição da 
sinhá, mas, ao mesmo tempo, se sente atraído por esta rejeição, pela 
insatisfação da senhora diante de seu assédio. Por outro lado, os diminutivos 
"enfadadinha" e "mugangueirinha" (aquela que faz "mugangas", ou caretas) 
permitem perceber que o escravo interpreta a negativa como parte de um jogo de 
sedução. Além disso, o negro demonstra lançar mão não só do assédio, de quem 
"anda bulindo", mas de força física, ao "prender". O escravo exerce força sobre 
a senhora, de quem dispõe como a um objeto, em um jogo sádico sublinhado pela 
circularidade do lundu, que começa e termina com o mesmo verso, como a 
reproduzir a forma repetitiva com que se dá a tortura à sinhá.   

Essas formas de lundu permitem falar, através do discurso do negro, de outro 
tabu. Torna-se tema a própria sexualidade da mulher branca, que, de uma forma 
ou de outra, é representada como participante de jogos de sedução com seus 
escravos. Está em jogo, dessa forma, um desafio à própria moral vigente na 
época, principalmente no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade. O 
humor dos lundus advém, em parte, das cenas transgressoras e maliciosas que 
apresentam, em estrofes sempre marcadas pela leveza e pela graciosidade. O 
surpreendente e curioso é que estas formas consigam trazer à tona questões 
complexas como a escravidão e a violência, temas que encontram no tom 
humorístico o viés possível de visibilidade, ainda no século XVIII. 

É então nos lundus que se expõem essas ambivalências amorosas, em que violência 
e sedução se tornam cúmplices e indissociáveis. A receptividade que essa forma 
de canção encontra em Portugal leva à compreensão do lundu como evidente traço 
diferencial entre metrópole e Colônia. Ao mesmo tempo, é através dele que a 
Colônia elabora criativamente as contradições da tradição escravocrata e ensaia 
o reconhecimento do papel crucial da africanização na cultura brasileira.

Tereza Virginia de Almeida é doutora em letras pela PUC-RJ, com pós-doutorado 
em literatura comparada pela Universidade de Stanford (EUA), e professora de 
literatura brasileira na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
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