Assunto: Sobre o Afeganistão, o Petróleo e a Indústria bélica
Os pica-paus na guerra do Afeganistão
Você deve estar se perguntando o que é que os pica-paus têm a ver com a
guerra do Afeganistão. Fique tranqüilo, não se trata de nenhum tipo de
avião espião norte-americano e, muito menos, de uma arma secreta de Osama
Bin Laden. Como você sabe, os pica-paus são pássaros que usam o próprio
bico para retirar os parasitas escondidos atrás das cascas das árvores.
Entre eles, há alguns que são jornalistas, professores, assessores e
pessoas simples que, em sua luta quotidiana contra a exploração, tentam
furar o muro das aparências para desvendar os fatos e as relações que
atrás dele se escondem.
O trabalho corajoso e persistente destes pássaros já conseguiu fazer
alguns pequenos furos na muralha das declarações oficiais do presidente
Bush e de Osama Bin Laden que disputam o papel de representantes do "bem"
contra as forças do "mal". Dizem os pica-paus que os buracos são ainda
muito pequenos para que o bico possa passar, mas já dá pra espreitar
através deles a realidade que se oculta à sombra deste muro.
Ao contarem o que viram, alguns deles me convenceram a colocar no papel o
relato de suas primeiras observações e a levá-las até você. Foi assim que
me apressei em pegar a caneta e organizar as informações de acordo com
aquilo que foi possível enxergar através de cada um dos pequenos furos. É
pouco, mas já permite ver com outros olhos o dia-a-dia da guerra no
Afeganistão.
A história e suas revelações surpreendentes.
O Afeganistão vem sendo considerado como uma das nações mais pobres e
atrasadas do mundo. Até o início da década de 70, o país é governado
por uma monarquia que tem pouco poder. Quem manda mesmo é um punhado de
proprietários de terras que não hesita em usar a religião muçulmana para
legitimar a sua dominação.
Esta realidade faz o descontentamento crescer não só entre o povo como
nos setores progressistas e em parte do exército. É contando com o
apoio deles que, em 1973, o rei Mohamed Zahir Shah é derrubado por seu
primo Mohamed Daud que instaura um regime republicano. A reviravolta
permite as atividades do Partido Democrático do Povo do Afeganistão
(PDPA), de inspiração comunista, que tem como base os poucos
intelectuais afegãos que residem nas cidades, os estudantes e alguns
oficiais das forças armadas. Os pontos principais do seu programa são:
a reforma agrária, a libertação da mulher e a alfabetização em massa da
população. Cedendo às pressões dos conservadores, Daud assume posições
cada vez mais moderadas e, em 1978, tenta suprimir as atividades do
PDPA numa época em que a situação econômica e social do Afeganistão
piora a olhos vistos.
Neste contexto, duas lideranças de esquerda são assassinadas e as
manifestações de protesto se espalham pelo país. A polícia reage com a
repressão e a prisão de vários representantes dos setores progressistas.
Mas, longe de acabar com os tumultos, estes acontecimentos abrem
caminhos para a revolta de um setor das forças armadas. Nos
enfrentamentos que se desenvolvem em abril de 1978, Daud e boa parte do
seu gabinete são mortos. O PDPA assume o poder e proclama o Afeganistão
"república democrática" sob o comando de Mohamed Taraki.
No mesmo ano, Taraki realiza uma reforma agrária radical. Cerca de 250
mil camponeses são beneficiados com uma ampla distribuição de terras e
são canceladas todas as dívidas com os antigos proprietários. O novo
regime liberta 8 mil prisioneiros políticos e declara que a educação é
um direito universal tanto para os homens como para as mulheres.
As reações dos setores conservadores são violentas e levam Taraki a
buscar apoio na antiga União Soviética. Esta escolha provoca duros
embates no interior do PDPA que acabam fortalecendo a oposição.
Em setembro de 1979, Taraki é assassinado e substituído por Hafizullah
Amin, homem forte do regime anterior. Incapaz de controlar a situação
do país, Amin é morto em dezembro do mesmo ano durante a rebelião que
leva ao poder Babrak Karmal, apoiado pelo exército da União Soviética
que, no final de dezembro de 1979, ocupa a capital e, em seguida,
estende o seu controle ao resto do país. As mudanças iniciadas com
Taraki continuam e os resultados começam a aparecer. Se em 1977 só 15%
dos meninos e 2% das meninas tinham acesso à escola, durante o governo
do PDPA esta porcentagem cresce até atingir 63 % das crianças em 1987.
No mesmo período, o investimento nos serviços de saúde eleva a
esperança de vida de 33 para 42 anos. As mulheres dão passos
importantes para começar a sair da situação de marginalização em que se
encontram. Durante os governos comunistas, o analfabetismo feminino cai
de 98% para 75%, milhares de mulheres se integram à vida política do
país e abandonam progressivamente as restrições religiosas que as
marginalizavam.
Nunca é demais registrar que é a posição estratégica em relação aos
demais países da Ásia Central e do Oriente Médio a levar Estados Unidos
e União Soviética a uma acirrada disputa pelo controle do Afeganistão.
Diante da ocupação do Exército Vermelho, a CIA norte-americana estimula
a criação de grupos guerrilheiros que contam com o apoio dos
proprietários de terras atingidos pela reforma agrária, dos serviços
secretos do Paquistão, da OTAN, de Israel e da Arábia Saudita.
Em março de 1985, o presidente dos EUA, Ronald Reagan, autoriza
oficialmente o aumento da ajuda que, desde 1979, a CIA destinava aos
guerrilheiros afegãos. Através do Paquistão, os Estados Unidos fazem
chegar a eles armas e dinheiro num montante de um bilhão de dólares
anuais. A idéia com a qual a CIA procura arregimentar adeptos em todos
os países árabes é a de que as sagradas leis islâmicas estariam sendo
violadas pelas tropas soviéticas que professam o ateísmo, razão pela
qual os seguidores de Maomé deveriam se unir para reivindicar a
independência do Afeganistão e derrubar o regime esquerdista sustentado
por Moscou.
Movidos pelo nacionalismo e pelo fervor religioso, mais de 100 mil
muçulmanos são envolvidos nesta "guerra santa" que combate o exército
soviético a serviço dos interesses dos EUA. É neste contexto que um dos
filhos da elite da Arábia Saudita, Osama Bin Laden, se torna um
estreito colaborador da CIA e passa a integrar as fileiras do Partido
Islâmico de Gulbudin Hekmatiar.
Em dez anos de ataques, os guerrilheiros armados pelos Estados Unidos
destroem quase duas mil escolas, 31 hospitais, dezenas de empresas,
várias centrais elétricas, 41 mil quilômetros de vias de comunicação,
906 cooperativas de agricultores, explodem bombas em cinemas e praças
cheias de gente. Os que Reagan chama de "lutadores da liberdade", Bin
Laden entre eles, se dedicam a matar sem piedade mulheres, crianças,
anciãos, líderes religiosos partidários do governo e professores.
Apesar do requinte de crueldade com o qual costumam agir, os
guerrilheiros nunca são chamados de "terroristas" nem pelos EUA e nem
pelos países europeus, chegando, no máximo, a receber o apelido de
"rebeldes" após utilizarem mísseis ingleses e estadunidenses para
derrubar dois aviões civis das linhas aéreas do Afeganistão.
Em setembro de 1987, Babrak Karmal se demite do cargo e o general
Najibullah assume o seu lugar. Pressionado pela nova política de
Gorbatchev o novo presidente tenta dar início a um processo de
pacificação que é recusado pelos guerrilheiros. Entre agosto de 1988 e
fevereiro de 1989, o exército soviético sai do Afeganistão. A situação
do país se torna ainda mais tensa não só pelos enfrentamentos entre os
guerrilheiros e as forças de Najibullah, como pelas divisões que se
manifestam entre os 15 grupos armados que lutam para derrubar o governo
afegão, 8 dos quais são muçulmanos xiitas enquanto os outros 7 são
sunitas.
Em maio de 1992, o exército de general Najibullah é derrotado, os
guerrilheiros ocupam a capital do país e, em junho do mesmo ano,
nomeiam Burhanudin Rabani como presidente interino. A sua tentativa de
fazer conviver a ala moderada com o setor fundamentalista do Partido
Islâmico de Hekmatiar não vinga e as duas facções se enfrentam numa
sangrenta guerra civil.
Em 1996, os integralistas islâmicos (Talibãs) tomam o poder. O seu
exército continua contando com a estrutura guerrilheira dos anos
anteriores. Nos campos de treinamento do Afeganistão e do Paquistão são
preparadas, agora, as forças que vão se opor aos grupos muçulmanos
moderados (que formam a "Aliança do Norte") e as que ajudarão a
sustentar a guerra separatista na Chechenia, apoiada pela CIA. A
presença dos EUA em mais este conflito não é explicada por motivos
nobres. Chechenos e norte-americanos estão interessados em afastar a
Rússia das abundantes jazidas de petróleo do Mar Cáspio. A
independência da Chechenia tiraria das mãos de Moscou o controle do
principal oleoduto que sai da região e abriria caminhos para a
exploração dos poços por parte das empresas inglesas e
norte-americanas.
Neste contexto, o Afeganistão seria uma espécie de ponto de passagem
obrigatória de um oleoduto e de um gasoduto que transportariam os
combustíveis a serem embarcados rumo aos Estados Unidos e ao Extremo
Oriente. Mas há um imprevisto. O Talibã se opõe a este brilhante plano
da CIA e os aliados de ontem se tornam inimigos dos interesses
estadunidenses que hoje aguardam ansiosos a sua concretização. Vamos
entender porque isso acontece.
Contrariando as aparências, em nenhum momento Osama Bin Laden é um
defensor dos fracos e oprimidos contra os interesses das empresas
multinacionais. E também ele nunca traiu o setor da elite árabe
interessado em ampliar seu domínio no Oriente Médio e na Ásia Central.
Ciente dos limites das reservas de combustíveis fósseis, este setor
busca o pleno controle das fontes de energia e a progressiva redução da
influência americana sobre a região. Mas, para isso, o primeiro passo é
o de desestabilizar as atuais monarquias da Arábia Saudita e dos países
próximos que, hoje, têm uma posição subserviente em relação aos Estados
Unidos. A motivação religiosa do seu grupo é um elemento importante
para fazer com que as massas muçulmanas empobrecidas se levantem contra
seus governantes e abram caminhos rumo a um estado islâmico
fundamentalista e capitalista. O apoio popular, o controle das jazidas e
a ação terrorista dos membros de sua organização (Al-Qaida) seriam
elementos chaves para começar a reverter a situação de dependência em
relação aos interesses norte-americanos e ingleses.
Tenha sido ou não Osama Bin Laden a planejar os atentados, a guerra
declarada pelos EUA parece ser uma mão na roda tanto para os
fundamentalistas afegãos como para os interesses ingleses e
norte-americanos. De um lado, os ataques ao Afeganistão obrigam os
países árabes e muçulmanos a escolherem entre Bin Laden (e a suposta
defesa da religião islâmica) e George W. Bush. Ao optarem pelo apoio ou
pela neutralidade em relação aos EUA estes regimes tendem a acirrar as
ações dos grupos que se opõem a seus governos. Ao escolherem Bin Laden,
não só perdem um importante aliado militar como este se transforma,
automaticamente, em seu inimigo. As manifestações que já foram
registradas nas ruas do Paquistão e da Indonésia são apenas uma pequena
amostra do que pode vir a acontecer em níveis bem mais amplos.
No que diz respeito aos Estados Unidos, a guerra é um meio necessário
para reafirmar o seu poder no mundo e tentar estabelecer em bases mais
favoráveis e duradouras o seu controle sobre as reservas de petróleo e
gás natural. Não é por acaso que EUA e Inglaterra se apressam em manter
contatos com a família e o ex-rei do Afeganistão, Mohamed Zahir Shah,
deposto em 1973, para que possam assumir o governo provisório da nação
após a eventual vitória das tropas aliadas. Ciente de sua fragilidade
política e da realidade do país, devastado por anos de conflito, o novo
governo não passaria de uma marionete cujos movimentos, em última
análise, seriam ditados pelos interesses do capital inglês e
norte-americano. É claro que isso demandaria ações adicionais para
neutralizar a atuação dos guerrilheiros da Aliança do Norte que hoje
recebem armas e dinheiro da Rússia (que também quer garantir o seu
controle sobre a região do Mar Cáspio), mas esta já é outra questão a
ser delineada pelo desenrolar do conflito.
Imagino que depois desta chuva de dados históricos, contradições e
surpresas, você já deve estar meio cansado. Eu sei que não foi fácil
segurar o tranco, mas, confesse, depois do relato deste pica-pau as
coisas começam a ficar mais claras. Sabendo que as próximas páginas vão
apresentar elementos intrigantes, o segundo representante da espécie
sugere que você tome um café e dê uma boa espreguiçada porque vem aí
...
O problema das fontes de energia.
Com certeza, você deve ter percebido que o pica-pau anterior nos
alertou sobre uma disputa que vem acontecendo há mais de uma década: a
guerra pelo controle das reservas de petróleo e de gás natural. Sabendo
da importância deste assunto, ouvi com atenção o que outro pássaro
destemido tinha a dizer após a olhada que ele conseguiu dar através do
segundo pequeno furo que já foi feito na muralha.
Antes de começar o seu relato, ele me aconselhou a pegar um Atlas e a
abri-lo nas páginas que contém os mapas do Oriente Médio e da Ásia
Central. Dessa forma, é bem mais fácil acompanhar e entender os seus
argumentos. Dada a dica, aí vai a narração que ele me fez com uma
paciência e precisão surpreendentes.
Diz o pica-pau que se o consumo mundial de petróleo continuar
aumentando do jeito que está, até 2020 estarão esgotadas cerca de dois
terços das reservas de combustíveis fósseis do planeta. Um prazo de 19
anos parece algo distante no tempo, mas, como se trata de uma
matéria-prima estratégica para a economia mundial, a corrida para
garantir o acesso a estes recursos vai se acirrar cada vez mais.
Neste contexto, a posição dos Estados Unidos é bastante vulnerável por,
pelo menos, três razões. A primeira vem de uma constatação inquietante.
Se os EUA tivessem que contar somente com as reservas que estão em seu
território teriam petróleo suficiente para não mais do que quatro anos.
Isso sem contar que, por exemplo, a exploração das jazidas do Alaska
demandaria investimentos mínimos da ordem de 20 bilhões de dólares só na
construção de um oleoduto e enfrentaria fortes oposições dos grupos
ecologistas.
A segunda está no fato de que 82 em cada 100 barris do petróleo
importado pelos Estados Unidos vem da Arábia Saudita. A monarquia que
governa este país, principal aliado dos EUA no mundo árabe, enfrenta uma
oposição crescente contida através de uma dura repressão a toda
expressão de sentimento antigovernamental. Apesar dos sucessos obtidos
até agora, a freqüência dos ataques terroristas na Arábia e o
descontentamento em relação ao seu governo são suficientes para
vislumbrar que esta dominação não vai durar para sempre.
O último motivo de preocupação não repousa somente na constatação de
que países como o Irã e o Iraque estão longe de ter um relacionamento
amigável com os Estados Unidos, mas, sobretudo, no fato de que as
empresas de capital francês (Total e Elf) fizeram pesados investimentos
no Irã e se associaram à Rússia na exploração das jazidas do Mar
Cáspio. Esta aliança permite à Rússia controlar, direta ou
indiretamente, um território que inclui as regiões produtoras do
Cáucaso (entre elas a Chechenia) e de boa parte da Ásia Central.
Uma saída para a situação desconfortável em que se encontram os
interesses norte-americanos já havia sido revelada no início de 1998
pelo Tenente Coronel da Reserva Lester W. Grau que, entre outras
coisas, foi assessor político e econômico no quartel geral das Forças
Aliadas da Europa Central em Brunssum, Holanda. Na matéria publicada
pela revistas Foreign Affairs, Lester reconhece a fragilidade das
condições de abastecimento dos Estados Unidos, avalia as alternativas
para melhorar esta situação e aponta como caminho mais viável a
construção de um oleoduto que sairia das jazidas do Cazaquistão ou do
Turcomenistão, próximas ao Mar Cáspio, passaria pelas cidades de Herat
e Kandahar, no Afeganistão, entraria no Paquistão por Quetta e
terminaria no porto de Karachi. Daí petróleo e gás seriam facilmente
embarcados rumo aos EUA, China e Japão evitando assim as águas
conturbadas do Golfo Pérsico que já foram palco de violentos
enfrentamentos. O custo da obra giraria em torno dos 2 bilhões de
dólares e daria acesso a reservas de petróleo 33 maiores que as da
Alaska e a uma quantidade de gás natural estimada em 50% do total já
descoberto a nível mundial. O único problema técnico é a presença em
território afegão de um tal de Osama Bin Laden cujas forças se recusam
em atender às expectativas de seus antigos aliados.
Eu já estava fechando o Atlas quando o pica-pau enfiou o bico entre as
páginas e o abriu no mapa do Extremo Oriente. De início não entendi,
mas ele me disse que eu estava esquecendo de dois países importantes
nesta disputa pelo acesso aos combustíveis fósseis: a China e o Japão.
Aquele pássaro sabido me contou que, nos dois últimos anos, a China
mudou a configuração de sua Força Aérea de defensiva para ofensiva e
produziu novos mísseis estratégicos de longo alcance. Além disso, vem
deslocando boa parte de seus efetivos militares que estavam na
fronteira norte com a Rússia para seu lado oeste (de onde espera
aumentar o fornecimento de petróleo e gás natural) e para os mares do
Leste e do Sul da China. Aparentemente, isso poderia ser explicado em
função das conturbadas relações políticas deste país com a ilha de
Taiwan que já sofreu sérias ameaças militares. Mas uma análise mais
atenta revela que é justamente nestes mares que se encontram jazidas
promissoras de petróleo e gás natural.
Na corrida às reservas de combustíveis fósseis, a China já declarou o
Mar do Sul como parte do seu território marítimo nacional e reafirmou o
seu direito de usar a força para protegê-lo. Esta postura agressiva
estimulou a Indonésia, a Malásia, a Tailândia, o Vietnam e as Filipinas
a reforçar seus efetivos aéreos e navais nesta região cujo controle é
objeto de disputa.
O Japão não ficou pra trás e aumentou a sua capacidade de operação com
novos navios de guerra e aviões de combate armados com mísseis. No Mar
do Leste os japoneses estão disputando diretamente o controle das
futuras jazidas e no do Sul procuram garantir não só a manutenção de
suas rotas comerciais com o sudeste asiático como o próprio
abastecimento de petróleo. De fato, 80% dos petroleiros que levam o
produto para o país atravessam as águas do Mar do Sul da China e uma
guerra nesta região representaria um alto custo para o Japão.
Ciente de todas as implicações e do jogo de interesses que estariam
envolvidos num possível conflito neste canto do globo, há três anos os
Estados Unidos vêm pressionando o Japão para que assuma um papel mais
ativo no equilíbrio militar daquela área. Isso implicaria em pesados
investimentos que superariam as necessidades de autodefesa permitidas
pela constituição nipônica. Além dos limites legais, o horror e a
rejeição diante de um ataque armado a outro país são sentimentos ainda
presentes entre o povo que não consegue esquecer os efeitos
devastadores das bombas atômicas. Ao mesmo tempo, porém, não faltam
especialistas que vêm apontando os gastos em armamentos, a serem
realizados pelo estado japonês, como um caminho para enveredar numa nova
fase de crescimento econômico, além, claro, de poder enfrentar melhor as
tensões com as nações vizinhas.
Diz o pica-pau que ele ficou preocupado com a decisão do Japão de
enviar navios de guerra em apoio à esquadra norte-americana. Ele sabe
que a ajuda se dará nas áreas de transporte, reabastecimento, serviços
médicos, proteção às instalações militares dos EUA no Japão, apoio aos
serviços de inteligência e ajuda humanitária aos refugiados. Mas, após o
fim da segunda guerra mundial, esta é a primeira vez que o país envia
parte de suas forças armadas para uma zona de guerra longe de seu
território e a utiliza para tarefas que nada têm a ver com a sua
autodefesa.
Ao que parece, em nome da necessidade de responder aos ataques
terroristas do dia 11 de setembro como "renovado desafio à liberdade",
o Japão ensaia os primeiros passos para justificar um aumento dos
gastos militares e levar as pessoas a reduzir suas resistências em
relação à idéia de uma guerra ofensiva. É como se os senhores do poder
estivessem tirando os sapatos para entrar na consciência do povo sem
serem ouvidos e plantar aí as sementes das atitudes que gostariam de
ver brotar no futuro.
O pica-pau me garante que as nuvens no horizonte dos Mares da China não
estão ainda tão escuras a ponto de ameaçarem uma tempestade iminente. A
chuva ainda pode demorar, mas a depender do desfecho dos enfrentamentos
no Afeganistão, o aumento da tensão nesta região do mundo tende a ser
inevitável. Na dúvida, é melhor ficarmos de olhos e ouvidos bem abertos
já que, por um bom tempo, as notícias que virão do Extremo Oriente serão
cobertas pelo show de imagens da parafernália de guerra norte-americana.
A "guerra nas estrelas" como caminho para a dominação mundial.
Assim como uma conversa puxa outra, o relato do pica-pau anterior foi
seguido pela narração de outro que se atreveu a espreitar pelo buraco
que chamou de "guerra nas estrelas". Confesso que, de início, fiquei
meio desconfiado, como quem acha que o pássaro, desta vez, está
exagerando na cores, mas ele me mostrou como cada peça da política
armamentista estadunidense encaixa nesta idéia geral.
Não é uma novidade pra ninguém o fato de que, nos últimos anos, as
fábricas de armas dos Estados Unidos andavam mal das pernas. O governo
havia reduzido a compra de suprimentos das forças armadas e as
restrições comerciais impostas a vários países impediam o aumento das
exportações das mais caras e eficientes máquinas mortíferas. A situação
era tão gritante que, em maio do ano 2000, um grupo de especialistas
reunidos pelo Pentágono chegava à conclusão de que era necessário e
urgente fazer com que este setor da indústria "ganhasse mais dinheiro".
Respondendo a este apelo, o então presidente, Bill Clinton, reduzia as
restrições às exportações de artefatos bélicos dos EUA com o claro
propósito de aumentar os lucros das empresas e, de conseqüência, suas
atividades produtivas e de pesquisa.
Por importante que fosse, esta ajuda não substituía os gastos que o
estado teria caso fosse viabilizado em grande escala o escudo de Defesa
contra Mísseis Balísticos (DMB), conhecido também pelo nome de "guerra
nas estrelas". O problema aqui não era tanto a disponibilidade de
recursos ou a falta de vontade política do Congresso, mas sim a
oposição internacional a este projeto apontado como um instrumento de
dominação mundial.
Por submissas que sejam as nações de planeta, nenhuma delas engole a
idéia que o DMB é apenas uma arma de caráter defensivo para proteger os
Estados Unidos dos ataques com foguetes nucleares que, possivelmente,
seriam lançados por países que se opõem à sua política internacional.
Sabendo do poder de destruição destas armas, do arsenal e dos sistemas
de defesa já existentes, disparar um míssil nuclear contra os Estados
Unidos seria uma ação suicida para qualquer governo. Estas simples
constatações, acompanhadas das ameaças de uma nova corrida armamentista
envolvendo os países do Oriente Médio, a China, a Índia, o Paquistão e
a própria Rússia, estavam esvaziando o esforço da diplomacia
norte-americana. Esta fazia realmente o impossível para mostrar que a
segurança dos EUA estava em perigo e que o DMB era uma necessidade para
a paz mundial.
É neste contexto que, em maio do ano 2000, a conferência da ONU sobre o
Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares se pronunciou por uma
ampla condenação do DMB com o argumento de que deitaria por terra
décadas de acordos internacionais para a redução e o controle das armas
nucleares e promoveria uma nova corrida armamentista.
A bem da verdade, estas reações "oficiais" escondiam a realidade que
havia sido expressa pelo representante da China ao discutir na ONU o
projeto "guerra nas estrelas" do então presidente Ronald Reagan:
"quando os Estados Unidos se convencerem de que possuem tanto uma longa
lança, como um forte escudo, poderão ser levados a concluir que podem
destroçar qualquer país, em qualquer lugar do mundo, sem perigo de
retaliações". Em português claro, se é possível dar porrada sem se
atingido, ninguém vai ter coragem e ousadia suficientes para se opor aos
desmandos norte-americanos e, de conseqüência, os interesses econômicos
que carregam a bandeira estadunidense estarão protegidos em qualquer
lugar do planeta.
Você entende que, diante do poder de fogo deste sistema de "defesa",
não é preciso efetuar nenhum disparo para que todos se disponham a
obedecer. Por si só, a sua existência já constituiria uma ameaça
assustadora. Seria só o Tio Sam bater o pé para pôr todos pra correr. E
isso, longe de representar um futuro de liberdade, igualdade e paz,
seria sinônimo de dominação, de aprofundamento da desigualdade e da
exploração, de um estado de terror e de guerra permanentes.
O pica-pau me confessou que ele adoraria reconhecer que suas conclusões
estão erradas, mas as matérias publicadas pelo New York Times,
Financial Times e Foreign Affairs em maio e junho de 2001 dizem que,
infelizmente, suas impressões podem estar corretas. O verdadeiro
objetivo do escudo de Defesa contra Mísseis Balísticos é o controle do
espaço, o que, nas palavras do atual Secretário de Defesa dos EUA,
Donald Rumsfeld, implica em "colocar armas ofensivas no espaço". Em
outras palavras, não bastasse o perigo constituído pelos arsenais
terrestres, a opção norte-americana aponta para a militarização efetiva
do espaço exterior. Isso seria realizado com armas capazes de atingir
não só os mísseis (que poderiam ser disparados da terra) e outros alvos
civis ou militares, como os satélites que orientam os sistemas de
defesa e garantem as comunicações entre as demais nações.
Levando em consideração que o desenvolvimento e a produção das armas
anti-satélite é bem mais simples do que a operacionalização do DMB,
haveria um aumento da corrida aos armamentos espaciais por parte de um
bom número de países. A vantagem competitiva das empresas
estadunidenses garantiria seus lucros e o poderio dos Estados Unidos
sobre o mundo.
Aliás, foi por estas razões que, recentemente, os EUA se recusaram a
reafirmar o Tratado do Espaço Exterior de 1967 (que proíbe a colocação
de armas no espaço) e, desde janeiro de 2001, vêm bloqueando todas as
seções da conferência da ONU sobre desarmamento. Isso apesar das
pressões da Rússia e da China que, cientes do seu atraso tecnológico e
dos custos proibitivos deste projeto para suas economias, apelavam para
a completa desmilitarização do espaço, a redução do número de ogivas e
a criação de zonas livres de armas nucleares.
Os atentados terroristas do dia 11 de setembro mostraram que a América
é, de fato, vulnerável e que há vários países querendo prejudicá-la.
Somando esta constatação às pressões internacionais articuladas pela
dupla Bush-Blair ao redor da necessidade de apoio das demais nações à
luta contra o terrorismo, o resultado pode ser explosivo. A médio
prazo, a perspectiva é a de que o peso dos argumentos americanos a
favor do DMB venha aumentando tanto no interior da ONU como na relação
com as principais potências do planeta. Isso não significa que a
indústria armamentista vai ter que esperar para engordar seus lucros. O
ritmo de suas máquinas já foi aumentado após a decisão de declarar
guerra ao Afeganistão e as ações de indústrias como a Honeywell
International, Locked Martin, Rayteon, Northrop Grumman e a Boeing (que,
além de aviões, fabrica também mísseis e satélites) são as únicas que
se valorizaram mesmo nos dias em que a Bolsa de Valores de Nova Iorque
registrava seguidas quedas em seus indicadores. Para elas, esta guerra
(à qual já foi destinada a quantia de 344 bilhões de dólares) é apenas
uma espécie de tira-gosto quando comparada às possíveis encomendas do
projeto de militarização do espaço. Pelo visto, os urubus já estão se
posicionando com o olhar atento e o bico afiado. O desfecho do conflito
no Afeganistão é que vai dizer quanta carniça continuará sendo
oferecida à apreciação de seus paladares.
Antes de ir embora, o pica-pau me fez reparar que nenhum escudo
antimíssil pode deter o que ele chamou de "terrorismo atômico". De
acordo com seus conhecimentos, a carga de "uma bomba nuclear que pudesse
facilmente varrer Manhattan e matar 100 mil pessoas é uma bola de
plutônio que pesa 15 libras (em torno de 7 quilos). Ela é pouco maior
do que uma bola de futebol e pode ser transportada para o interior dos
Estados Unidos numa mala de viagem".Não, infelizmente isso não é ficção
científica. O míssil que carrega a ogiva é grande por causa dos
motores, dos tanques de combustível, do sistema de navegação e dos
demais etceteras que o fazem funcionar, mas a parte que vai fazer o
estrago é pequena. Sabendo que com a confusão causada pelo fim da União
Soviética houve contrabando de peças e material nuclear, nada impede
que tais cargas tenham caído nas mãos de grupos terroristas que contam
com as polpudas quantias de dinheiro necessárias para realizar este
tipo de compra. É claro que as coisas não são tão fáceis assim, mas
esta possibilidade é bem menos remota do que parece.
Não bastasse este perigo, os recentes casos de contaminação pela
bactéria antraz revelam que as armas químicas e biológicas são,
provavelmente, uma ameaça ainda maior para os países ricos. Ainda que a
sua disseminação seja razoavelmente simples, a transformação deste
micro-organismo numa arma mortal é bastante complexa e não pode ser
realizada em laboratórios de "fundo de quintal". O pica-pau me disse
que, provavelmente, os EUA correm o risco de provar o seu próprio
veneno. De fato, além da atual oposição da administração Bush ao
controle das armas químicas e biológicas, o próprio governo Clinton se
encarregou de sabotar os acordos internacionais sobre esta matéria. Por
anos a fio, ele não financiou e deixou de realizar as inspeções
internacionais e as demais ações que poderiam garantir a eliminação
deste perigo para a vida da humanidade porque estava preocupado em
"proteger as companhias farmacêuticas e de biotecnologia americanas". O
resultado já está debaixo dos nossos olhos: qualquer pó branco
"suspeito" é motivo de pânico e de correrias que só favorecem as
indústrias de antibióticos e de máscaras antigás. Quando o lucro vem
antes da vida, o resultado final não pode ser diferente do que já
cansamos de constatar.
Dito isso, o terceiro pássaro bateu asas e saiu apressado de volta à
muralha. Já estava achando que o meu trabalho de relator havia
terminado quando vi chegar um pica-pau com as penas meio chamuscadas
pelo fogo. Cansado e ferido, me conta que um míssil das "forças
aliadas" o pegou de raspão na hora em que estava tirando o olho do
último buraquinho. Ainda não sabe se esta foi uma retaliação contra a
espécie ou uma ameaça, mas, apesar dos pica-paus não terem um "FBI" e
nem uma "CIA", são suficientemente inteligentes para entender que não
se trata de um erro ou daquilo que numa guerra engorda a lista dos
"danos colaterais". Preocupado em divulgar suas informações, me pede
para não ficar enrolando e chamar o seu relato com o título...
Matando quatro coelhos com uma paulada só.
Além dos problemas da indústria armamentista e de abastecimento de
petróleo e gás natural, a economia norte-americana estava patinando naquela
que os especialistas chamam de "crise de superprodução". Sim, você entendeu
bem, não se trata de uma situação de falta, mas de sobra de capitais e de
mercadorias. É uma realidade que, de tempos em tempos, se instala em
qualquer país capitalista após uma fase de crescimento econômico.
A causa do seu aparecimento não está no desemprego, mas no mecanismo que
faz girar as engrenagens da exploração: a produção da riqueza é coletiva,
mas, na hora de dividir o bolo, são os patrões que se apropriam da fatia
maior. Eles a usam não só para ter condições de vida muito melhores do que
as nossas, como para realizar novos investimentos aumentando assim o número
de bolos e o tamanho de suas fatias. Como os trabalhadores e as
trabalhadoras ficam só com as migalhas, não é difícil você entender que,
mais dias menos dias, a sociedade vai viver o absurdo de uma situação de
pobreza em meio à abundância.
Aparentemente, a saída poderia ser a de promover o encontro entre os
famintos e a comida, os descamisados e a roupa elevando os salários e
distribuindo melhor a renda. Mas isso é impossível de acontecer no sistema
capitalista, pois o aumento dos vencimentos faz a exploração diminuir e
reduz o retorno sobre as quantias que foram investidas. Como o objetivo
central é o lucro, e não a vida do ser humano, os ganhos não seriam
compensatórios e os patrões não teriam razões para aplicar seu dinheiro na
produção. É por isso que, diante da crise, eles optam por fechar as
empresas, reduzir drasticamente o ritmo das máquinas ou até mesmo destruir
a abundância. O aumento do desemprego assim provocado vai elevar o arrocho
dos salários e a exploração da força de trabalho proporcionando o retorno
de margens de lucro satisfatórias que apontam para uma nova fase de
crescimento da economia.
Entre os problemas que esta situação propõe, está o de justificar perante
os olhos da sociedade os sacrifícios que os capitalistas preparam para a
população trabalhadora. No passado, já tivemos a desculpa do aumento dos
preços do petróleo, mas, desta vez, nem isso podia ser usado para explicar
a crise do sistema, controlar o descontentamento e garantir a confiança
popular nas leis de mercado.
Os atentados terroristas do dia 11 fizeram as coisas precipitarem. A
economia dos Estados Unidos, que já estava mal das pernas, dá sinais
claros de que vai entrar em recessão, de que o desemprego vai aumentar e
de que várias empresas caminham para a redução de suas atividades.
Surpreendentemente, não se registram protestos e manifestações de revolta
por parte das pessoas que acabam de perder seus empregos. No momento, há
um aumento "tranqüilo" dos que se alistam nas fileiras do
salário-desemprego e do exército, ao mesmo tempo em que os árabes se
tornam saco de pancada no qual muita gente já desabafou sua raiva e seu
próprio sentimento de impotência.
O patriotismo, alimentado pela guerra, faz com que o orgulho de "ser
americano" oculte as contradições gritantes que fizeram crescer o fogo da
crise e que, agora, serão esquecidas. O senso comum não tem a menor dúvida:
Osama Bin Laden é o verdadeiro responsável pelo agravamento da situação
econômica do país. Mais uma vez, os capitalistas agradecem e, como já
fizeram ao longo da história, se preparam para transformar o esforço de
guerra na razão que justifica todo e qualquer aumento da exploração. Em
nome do combate ao terrorismo, os lucros das empresas vão voltar a ter um
futuro promissor.
Além de dar um sentido palpável à crise econômica, os atentados devem
destravar as negociações para a formação da Área de Livre Comércio das
Américas (ALCA), ao mesmo tempo em que colocam obstáculos à rodada de
negociações no interior da Organização Mundial do Comércio (OMC). Bom,
vamos pegar um bicho de cada vez e mostrar a relação entre estes elementos
e a crise da qual falávamos antes.
No que diz respeito à ALCA, a recusa de países como o Brasil em apressar a
formação de um mercado comum das Américas se baseia numa constatação muito
simples: o baixo preço das mercadorias produzidas nos Estados Unidos (às
vezes, a custos subsidiados) acabaria levando à falência um número
significativo de empresas que não têm a menor condição de entrar nesta
competição em pé de igualdade. Para que isso não aconteça, os países da
América do Sul vêm taxando uma longa lista de produtos importados das
nações do norte com a finalidade de elevar seus preços e proteger suas
economias até que sejam eliminados os efeitos devastadores da competição
internacional.
Inicialmente, se previa que as coisas ficariam como estão até janeiro de
2005, data a partir da qual seria iniciado o processo de redução dos
impostos e seriam removidas as barreiras para a livre comercialização dos
produtos entre as duas Américas. Sentindo a chegada da crise, em 1999, os
EUA começaram a ampliar as pressões para reduzir significativamente os
tempos que antecediam a integração das economias do continente. A razão
era muito simples: o aumento de suas exportações ajudaria a apressar a
saída da crise de superprodução. Na medida em que a sobra fosse exportada
para a América do Sul, os lucros nos Estados Unidos parariam de cair,
várias empresas seriam abertas para dar conta das novas encomendas ao
mesmo tempo em que muitas outras estariam sendo fechadas em países como
Brasil e Argentina.
Sim, você entendeu bem. Uma das saídas para a crise dos EUA era justamente
a de exportá-la para outros países apressando a implantação da ALCA.
Acontece que o Brasil não comprou esta idéia e isso colocou em ponto-morto
a discussão do mercado comum das Américas. As negociações pararam e tudo
parecia indicar que Bush teria mesmo que esperar janeiro de 2005. Com o
clima de chantagem criado pelas declarações de que "quem não está do lado
dos Estados Unidos está do lado dos terroristas" é de se esperar que as
pressões para acelerar o ritmo da ALCA se ampliem nos próximos meses. Isso
ocorreria porque para reativar a economia e para arcar com os custos da
guerra os EUA precisam de recursos, entre os quais figuram os do aumento
de suas exportações.
No que diz respeito à Organização Mundial do Comércio (OMC), os
norte-americanos vêm sendo acusados de lançar mão de práticas
protecionistas (como a imposição de taxas aos produtos de outros países ou
a definição de quotas rígidas de importação de certas mercadorias) e de
aumentar os subsídios concedidos aos agricultores. Estas medidas, que
visam proteger a economia estadunidense da concorrência internacional,
ferem várias normas da OMC e, antes dos atentados, os países europeus
estavam se organizando para que as negociações dos próximos meses fossem
favoráveis aos interesses de suas economias. Pelas últimas informações, o
calendário de reuniões preparatórias acaba sendo esvaziado pelo desenrolar
dos acontecimentos. Enquanto isso, as incertas e sombrias perspectivas de
futuro para a economia mundial e para as relações internacionais estão se
encarregando de questionar a conveniência da rodada de negociações da OMC
começar em 2002 e abrem caminhos para a implantação de exigências que não
são favoráveis aos países pobres.
Como você já deve ter entendido, os atentados do dia 11 de setembro
ajudaram a matar mais três coelhos: culpam os terroristas pela crise
econômica, pressionam para acelerar os tempos da ALCA ao mesmo tempo em que
tendem a reduzir as exigências de mudança na política econômica
norte-americana no interior da OMC.
O quarto coelho é tão importante quanto os anteriores. A reação dos
Estados Unidos aos ataques terroristas apaga as diferenças entre os
movimentos de resistência (que assumem a forma de uma guerrilha armada) e
aqueles que podem realmente ser definidos como terroristas. Esta confusão
abre o caminho da repressão violenta contra aqueles grupos cuja luta vem
ganhando o apoio da opinião pública internacional.
Aproveitando o sentimento de indignação que se espalhou pelo mundo, a
Agência Estadunidense de Combate às Drogas, por exemplo, se apressou em
incluir o Exército Zapatista de Libertação Nacional do México (EZLN) na
sua lista de movimentos terroristas a serem combatidos. Apesar dos
zapatistas não ter realizado nenhum atentado e não estarem envolvidos com o
tráfico, as acusações norte-americanas vão no sentido de pressionar o
governo mexicano a adotar uma saída militar para o conflito que vem se
desenrolando desde 1º de janeiro de 1994. Entre as principais razões que
explicam esta postura, está o fato de que o EZLN e as comunidades
indígenas que o apóiam ocupam uma região muito rica em petróleo e urânio.
A coisa foi tão descarada que, temendo o pior, tanto o governador do
Estado de Chiapas como o encarregado do governo pelas negociações com os
zapatistas, Luis H. Alvarez, se apressaram em declarar aos jornais que o
EZLN não pode ser confundido com um grupo terrorista por ter objetivos
sociais bem definidos e também não há envolvimento de seus integrantes no
tráfico de entorpecentes.
Como você pode ver, os Estados Unidos não perdem tempo. A lista destes
grupos parece ser longa e, se as intenções norte-americanas não forem
desmascaradas, pouco a pouco, qualquer manifestação contra os interesses
dos poderosos pode vir a ser considerada uma forma de terrorismo por
representar um atentado contra a ordem. Os mais diversos grupos de
resistência que organizaram os protestos de Genova, Praga, Washington e
Seattle seriam colocados sob suspeita pelo simples fato de existirem.
Apesar do cansaço e das feridas, o quarto pica-pau decide voltar para
ajudar os demais que se esfolam na árdua tarefa de furar a muralha. Um
profundo silêncio de reflexão se apodera do quarto onde estou escrevendo
estas últimas linhas. Revolta e esperança formam um turbilhão que empurra à
ação, a levantar a cabeça e começar a caminhar. Sozinho com todos estes
pensamentos olho pela janela de onde vejo entrar um pombo-correio. Os seus
movimentos inquietos me fazem entender que se trata de algo urgente e me
apresso a abrir a mensagem que ele traz. Nela está escrito: "A humanidade
está em perigo. Os que dizem estar do lado do bem são lobos disfarçados de
cordeiros. Não há tempo a perder. Convide os pica-paus e os demais
pássaros de todas as cores, tamanhos, raças e religiões a correrem para a
muralha. Precisamos abrir novos buracos para que nas escolas, nas
fábricas, nos campos, nos bairros e em todos os cantos da terra mais
pessoas possam enxergar o mundo que atrás dela se esconde. Urge organizar
as forças para enfrentar a onda de exploração e morte que ameaça se abater
sobre o planeta".
Bom, o recado está dado. Vou entregar ao pombo-correio uma mensagem
avisando que o relato está pronto e vai ser divulgado. Tomara que isso
ajude a fazer com que uma revoada de pássaros levante vôo e use seu canto
de múltiplas línguas para deter a guerra e construir um mundo onde a paz
seja o fruto de uma árvore chamada justiça.
(Embedded image moved to file: pic04827.pcx)
Emilio Gennari.
Brasil 18 de outubro de 2001.
Bibliografia:
Além das inúmeras matérias publicadas no jornal Gazeta Mercantil, foram
consultados os textos que seguem:
Ahmed Rashid, El Taliban: exportando extremismo, em Foreign Affairs em
espanhol, novembro-dezembro 1999.
Antonio Negri, El terrorismo, enfermedad del sistema, em La Jornada,
México, 15 de outubro de 2001
Delip Hiro, Las conseqüências de la jahad afgana, Inter Press Service,
21 de novembro de 1995.
Iván Valdés, EE. UU. necesita controlar la region petrolifera en torno
a Afganistán . La guerra del petrolero George W. Bush, em El Siglo, Nº
137, ano 2001. Obtido através da página eletrônica da revista.
José Antonio Egido, Afganistán: cuando los comunistas protegian los
derechos de las mujeres, em Rebelión, 26 de setembro de 2001. Obtido
através da página eletrônica da revista.
Lester W. Grau, La política Del Oleoducto e el surgimiento de uma nueva
región estratégica: Petróleo e Gas natural del Mar Caspio y Asia Central
, em Foreign Affairs em espanhol, janeiro-fevereiro de 1998.
Michael T Klare, La nueva geografia de los conflictos internacionales,
em Foreign Affairs em espanhol.
Michel Chossudovsky, Osama Bin Laden: um guerrero da CIA, em La ornada,
México, 23 de setembro de 2001.
Noam Chomsky, Hegemonia ou sobrevivência, divulgado através da página
eletrônica da revista Z-net em 3 e 4 de julho de 2001.
Noam Chomsky, A política dos Estados Unidos ? Estados rebeldes, estudo
divulgado através da página eletrônica do Centro de mídia independente
em 17 de setembro de 2001.
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