A justiça é cega... mas o juiz não
é.
Num
inquérito pela contravenção de vadiagem, que ocorreu na 5a Vara
Criminal de Porto Alegre, o juiz Moacir Danilo Rodrigues proferiu a
sentença que transcrevemos a
seguir:
"Marco
Antônio Dornelles de Araújo, com 29 anos, brasileiro, solteiro,
operário, foi indiciado pelo inquérito policial pela contravenção de
vadiagem, prevista no artigo 59 da Lei das Contravenções
Penais.
Requer o
Ministério Público a expedição de Portaria
contravencional.
O
que é vadiagem? A resposta é dada pelo artigo
supramencionado: "entregar-se habitualmente à ociosidade, sendo
válido para o
trabalho..."
Trata-se de uma norma legal draconiana, injusta e
parcial. Destina-se apenas ao pobre, ao miserável, ao
farrapo humano, curtido vencido pela vida. O pau-de-arara do
Nordeste, o bóia-fria do Sul. O filho do pobre que pobre é, sujeito
está à penalização. O filho do rico, que rico é, não precisa
trabalhar, porque tem renda paterna para lhe assegurar os meios de
subsistência.
Depois se diz que a lei é igual para todos! Máxima sonora na boca de um
orador, frase mística para apaixonados e sonhadores acadêmicos de
Direito.
Realidade dura e crua para quem enfrenta,
diariamente, filas e mais filas na busca de um emprego.
Constatação cruel para quem, diplomado, incursiona pelos caminhos da
justiça e sente que os pratos da balança não têm o mesmo
peso.
Marco
Antônio mora na Ilha das Flores (?) no estuário do Guaíba. Carrega
sacos. Trabalha "em nome" de um irmão. Seu mal foi estar em um bar na
Voluntários da Pátria, às 22 horas. Mas se haveria de querer que
estivesse numa uisqueria ou choperia do centro, ou num restaurante
de Petrópolis, ou ainda numa boate de
ipanema?
Na escala
de valores utilizada para valorar as pessoas, quem toma um trago de
cana, num bolicho da Volunta, às 22 horas e não tem documento, nem
um cartão de crédito, é vadio. Quem se encharca de uísque escocês
numa boate da Zona Sul e ao sair, na madrugada, dirige (?) um belo
carro, com a carteira recheada de "cheques especiais", é um
burguês.
Este, se
é pego ao cometer uma infração de trânsito, constatada a embriaguez,
paga a fiança e se livra solto. Aquele, se não tem emprego é preso
por vadiagem. Não tem fiança ( e mesmo que houvesse, não teria
dinheiro para pagá-la) e fica
preso.
De outro
lado, na luta para encontrar um lugar ao sol, ficará sempre de fora o
mais fraco. É sabido que existe desemprego flagrante. O zé-ninguém (já
está dito), não tem amigos influentes. Não há apresentação, não há
padrinho. Não tem referências, não tem nome, nem tradição. É sempre
preterido. É o Nico Bondade, já imortalizado no humorismo (mais
tragédia que humor) do Chico
Anísio.
As mãos
que produzem força, que carregam sacos, que produzem argamassa, que se
agarram na picareta, nos andaimes, que trazem calos,
unhas arrancadas, não podem se dar bem com a caneta (veja-se a
assinatura do indiciado à fls. 5v.) nem com a vida. E hoje, para
qualquer emprego, exige-se no mínimo o primeiro grau. Aliás, grau acena
para graúdo. E deles é o reino da
terra.
Marco
Antônio, apesar da imponência do nome, é miúdo. E sempre será. Sua
esperança? Talvez o Reino do
Céu.
A lei é
injusta. Claro que é. Mas a Justiça não é cega? Sim, mas o juiz não
é.
Por
isso:
Determino o arquivamento do processo
deste inquérito.
Porto Alegre, 27 de setembro de
1979.
1.. Moacir Danilo Rodrigues. Juiz de Direito - 5a Vara
Criminal."
Transcrito do Suplemento Jurídico: DER/SP no 108 de
1982.
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