A pedido do Amilcar coloco aqui uma mensagem fora do assunto. Serve para
ver um outro ângulo da questão.
Publicado na Folha de São Paulo no dia 11/12, na folha A-9.
AVISO: É um texto longo.
É isso, um abraço. Luiz Ezildo A instrução é a
parte menos importante da educação. JOHN LOCKE, filósofo inglês
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DEPOIMENTO
"Os que me espancaram tinham razão"
Jornalista relata agressão que sofreu de refugiados em povoado na
fronteira Afeganistão-Paquistão
ROBERT FISK DO "THE INDEPENDENT", NO PAQUISTÃO
Eles começaram por
nos cumprimentar com apertos de mão. Dissemos "salaam aleikum" (a paz esteja com
vocês), e então as primeiras pedrinhas pequenas voaram. Um menino tentou agarrar
minha bolsa. Depois outro. Então alguém me deu um soco nas costas. Rapazes
quebraram meus óculos e começaram a me bater no rosto e na cabeça com pedras. Eu
não conseguia enxergar por causa do sangue que jorrava de minha testa e inundava
meus olhos. Mas, mesmo naquela hora, entendi. Eu não podia culpá-los pelo que
estavam fazendo. Na verdade, se eu fosse um dos refugiados afegãos de Kila
Abdullah, perto da fronteira entre Afeganistão e Paquistão, eu teria feito a
mesma coisa com Robert Fisk -ou com qualquer outro ocidental que
encontrasse. Para que, então, registrar os minutos de terror e repúdio que
passei ao ser agredido perto da fronteira afegã, sangrando e chorando como um
bicho, quando centenas -sejamos francos e digamos logo que são milhares- de
civis inocentes estão morrendo nos ataques aéreos americanos ao Afeganistão,
quando a chamada "guerra da civilização" está queimando e mutilando os pashtus
de Candahar, tudo isso para o "bem" triunfar sobre o "mal"? Alguns dos
afegãos no pequeno povoado de Kila Abdullah viviam lá havia anos. Outros,
desesperados, furiosos e em luto por seus entes queridos massacrados, tinham
chegado ao longo das duas semanas anteriores. Era um mau lugar para nosso carro
sofrer uma pane. E era uma má hora, logo no final do jejum diário do Ramadã. Mas
o que aconteceu conosco foi simbólico do ódio, da fúria e da hipocrisia dessa
guerra imunda: um bando de homens afegãos miseráveis, jovens e velhos, que viram
estrangeiros -ou seja, inimigos- em seu meio e tentaram destruir pelo menos um
deles. Deve ter sido por volta das 16h30 que chegamos a Kila Abdullah, a meio
caminho entre a cidade paquistanesa de Quetta e a cidade de Chaman, na fronteira
com o Paquistão. Éramos Amanullah, nosso motorista, Fayyaz Ahmed, nosso
tradutor, Justin Huggler, do "The Independent", que acabava de cobrir o massacre
de Mazar-e-Sharif, e eu. Percebemos que alguma coisa estava dando errado
quando o carro parou no meio da rua estreita e repleta de gente. Saímos do carro
e o empurramos para a beira da rua. Amanullah se afastou em busca de outro
carro, e Justin e eu sorrimos para a multidão, de início amistosa, que já se
formara em torno de nosso veículo. Apertei muitas mãos e repeti muitos "salaam
aleikuns". A multidão foi crescendo, e sugeri a Justin que nos afastássemos
do jipe e andássemos para o meio da rua. Uma criança beliscou meu pulso, e eu me
convenci de que era um acidente, um instante de desprezo infantil. Então uma
pedrinha passou por minha cabeça e bateu no ombro de Justin. Então outro menino
tentou agarrar minha bolsa. Dentro dela estavam meu passaporte, cartões de
crédito, dinheiro, agenda, caderneta de endereços e telefones. Puxei a bolsa de
volta. Atravessamos a rua, e então alguém me deu um soco nas costas. Os meninos
riam. O estrangeiro estava assustado, fugindo. Era o Ocidente sendo humilhado.
Então percebemos um motorista de ônibus que acenava de seu veículo, no meio da
rua. Justin alcançou o ônibus e subiu nele. No momento em que eu pus os pés no
degrau, três homens agarraram a alça de minha bolsa e me puxaram para o chão.
Segurei a mão de Justin. Foi quando recebi o primeiro golpe forte na cabeça.
Quase caí. A mensagem era apavorante: alguém me odiava o suficiente para querer
me ferir. Recebi mais dois socos fortes, enquanto ainda segurava a mão de
Justin. Os passageiros olhavam para mim e para Justin, mas não se mexiam.
Ninguém queria ajudar. Foi então que me arrastaram para longe. Recebi mais
dois golpes na cabeça. O golpe seguinte foi dado por um homem que eu vi
carregando uma pedra grande. Ele bateu a pedra contra minha testa com força
tremenda, e alguma coisa líquida e quente veio jorrando sobre meu rosto, meus
lábios e meu queixo. Me chutaram -nas costas, nas canelas, na coxa direita.
Outro adolescente agarrou minha bolsa outra vez, e eu me vi segurando a alça.
Olhei para cima e percebi que deveria haver uns 60 homens, todos gritando. Foi
estranho, mas o que senti não foi medo, mas uma espécie de surpresa. Quer dizer
que é assim que acontece. Eu percebia que teria que reagir. Ou isso, racionei,
ou eu morreria. A única coisa que me chocava era meu próprio senso de
impotência física, a crescente consciência do líquido que começava a me cobrir
inteiro. Quanto mais eu sangrava, mais a multidão me batia. Pedras pequenas e
maiores começavam a atingir minha cabeça. De repente, ela foi golpeada com
pedras de cada lado, ao mesmo tempo -não pedras atiradas, mas pedras nas palmas
de homens que as usavam para tentar rachar minha cabeça. Então um punho acertou
um soco no meu rosto, estilhaçando meus óculos, enquanto outra mão arrancava o
segundo par de óculos que levo. Acho que neste ponto devo agradecer ao
Líbano. Passei 25 anos cobrindo as guerras do Líbano, e os libaneses me
ensinaram muitas e muitas vezes como se faz para continuar vivo: tome uma
decisão, qualquer uma, mas nunca fique parado sem fazer nada. Então puxei a
bolsa de volta das mãos do rapaz que a segurava. Depois me voltei para o homem
que segurava a pedra ensangüentada na mão e lhe dei um soco na boca. Eu não
enxergava muita coisa -não apenas estava míope, como também meus olhos estavam
cobertos por uma névoa vermelha-, mas vi um dente cair de sua boca. Ele recuou.
A multidão parou por um instante. Então ataquei o outro homem, ainda agarrando
minha bolsa, e lhe dei um soco no nariz. Depois corri. Eu estava no meio da
rua novamente, mas não conseguia enxergar. Tentei limpar os olhos. Comecei a
enxergar de novo e percebi que estava chorando. "O que foi que eu fiz?",
repetia. Eu tinha socado e atacado refugiados afegãos, exatamente as pessoas
sobre as quais vinha escrevendo havia tanto tempo, as pessoas mutiladas e
miseráveis que meu próprio país (Reino Unido) -entre outros- estava
matando. Neste momento aconteceu uma coisa espantosa. Um homem se aproximou
de mim, com muita calma, e me pegou pelo braço. Ele usava um turbante, tinha
barba grisalha, quase branca, e me conduziu para longe da multidão. Ele era como
uma figura do Velho Testamento, o bom samaritano, um muçulmano -um líder do
povoado, quem sabe- que tentava salvar minha vida. Ele me empurrou para
dentro da traseira de um carro da polícia. Mas os policiais não se mexiam.
Estavam apavorados. "Me ajudem!", gritei pela janelinha dos fundos da viatura,
minhas mãos manchando o vidro de sangue. Eles avançaram alguns metros e pararam
ao lado de um comboio da Cruz Vermelha. A multidão ainda nos perseguia. Mas dois
dos atendentes médicos me puxaram para trás de um de seus veículos, jogaram água
sobre minha cabeça e meu rosto e enfaixaram minha cabeça. "Deite no chão e lhe
cobriremos com um cobertor, para que não o vejam", disse um deles. Minutos mais
tarde, Justin chegou. "Não pegaram minha bolsa", eu repetia, como se meu
passaporte e meus cartões de crédito fossem uma espécie de Santo Graal. Mas
pegaram até mesmo meu último par de óculos, sem os quais fico cego, meu celular
e meu caderno de contatos, contendo 25 anos de números de telefone acumulados em
todo o Oriente Médio. Passei mais de duas décadas e meia relatando a
humilhação e a miséria do mundo muçulmano, e agora a revolta dele atingiu também
a mim. A brutalidade dos que me atacaram é inteiramente produto da ação de
outros, da nossa -nós, que armamos sua luta contra os russos, que ignoramos sua
dor, que zombamos de sua guerra civil e depois os armamos e pagamos para lutar
na "guerra pela civilização", a poucos quilômetros de distância, e então
bombardeamos suas casas, massacramos suas famílias e chamamos isso de "danos
colaterais". Então pensei que eu deveria escrever sobre o que aconteceu
conosco nesse incidente temível, tolo, sangrento, pequeno. Temi que outras
versões pudessem resultar numa narrativa diferente, numa história de como um
jornalista britânico "foi espancado por uma turba de refugiados afegãos". E é
esse o cerne da questão, é claro. Os agredidos foram os afegãos. As cicatrizes
foram infligidas por nós, pelos aviões B-52, e não por eles. E torno a repetir:
se eu fosse um refugiado afegão em Kila Abdullah, teria feito exatamente o que
fizeram. Teria atacado Robert Fisk -ou qualquer outro ocidental que
encontrasse.
Tradução de Clara Allain
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