maneschy; este eh dos teus.

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Bala no coração dos outros é doce na boca da gente
Paulo José Cunha

Será que entendi bem? Estão cobrando atitudes éticas de... bandidos?
Algo como "a imprensa é sagrada" e "o trabalho de repórteres é
intocável", e que os bandidos não tinham nada que matar o Tim Lopes pelo
simples fato de ser um jornalista no exercício da profissão, portanto
coberto por uma pretensa imunidade profissional? Queriam que facínoras
de morro tivessem por Tim Lopes o respeito que autoridades policiais
constituídas são obrigadas a ter por prisioneiros sob custódia? É mesmo
a sério ou estão querendo brincar com a gente? Pensam que estão
enganando a quem?

Inda outro dia, reli o trecho de "Ao vivo do campo de batalha" (Peter
Arnett, Ed. Rocco, 1994, 513 págs), em que o então jovem repórter Peter
Arnett recebe a ordem de um major norte-americano, em plena guerra do
Vietnã: "- Vou precisar de todos os homens esta noite (...) Pegue esta
carabina e apanhe 300 cargas de munição para proteger o lançador de
morteiros do lado oeste". Arnett escreveu o que sentiu: "Meu coração
desceu até os pés. Eu sabia que ia obedecer, mas comentei, para
desencargo de consciência. - Sei que o senhor é responsável por este
lugar, o senhor é um soldado profissional. O que me diz da Convenção de
Genebra que proíbe civis de fazer este tipo de coisa? Ele olhou para
mim. - Acha que o Vietcong vai respeitar sua condição de civil esta
noite, amigão?" Arnett, felizmente, não precisou usar a arma. Mas
confessou que a usaria, se houvesse necessidade.

Quando um repórter, munido com uma arma (desculpe, mas uma câmera oculta
é uma arma, sim, bem diferente de uma câmera exposta ou de uma caneta ou
um bloco de notas) entra numa região conflagrada como a dos morros
cariocas onde acontece uma guerra mais que declarada envolvendo
traficantes e outros canalhas, não conta com a proteção da Convenção de
Genebra. O vietcong não a respeitava em relação aos combatentes de
exércitos regulares nem aos jornalistas em serviço. As quadrilhas de
traficantes não a respeitam porque nem sabem o que é. Principalmente em
relação a algum repórter que se meta a besta de ir bisbilhotar suas
atividades nas áreas sob sua "proteção", como o baile funk onde Tim
pretendia documentar a prostituição de menores.
Então, que papo é esse de que os traficantes "passaram dos limites"?
Como se, em algum momento, eles tivessem respeito por algum limite.
Desde quando bandido tem limite?

Claro que a morte de Tim é para ser chorada, lamentada, condenada,
repercutida, usada para denunciar o poder paralelo do tráfico. É morte
que, como tantas outras, exige punição exemplar dos culpados, reparação
e justiça. Mas é impossível não identificar na forma como o assunto foi
tratado uma profunda hipocrisia. Teria sido criado o mesmo clima de
comoção nacional se Tim Lopes pertencesse a outra emissora? Por que a
Rede Globo não colocou em discussão o uso da câmera oculta para a
obtenção de informação com ingredientes de espetáculo, nem tocou nos
riscos que tal atividade acarreta? Quanto ganhava Tim Lopes - o "instant
celebrity" da hora, cuja morte alavancou espetacularmente a audiência do
"Fantástico" de domingo passado - para fazer esse trabalho sujo?
Trabalho sujo cujo resultado seria pouco depois exibido na assepsia dos
estúdios de Hans Donner por apresentadores bem maquiados, no conforto do
ar condicionado, com salários dez, vinte vezes maiores que o dele. Que
garantias tinha Tim Lopes para se expor daquela forma? E não se venha
com o velho argumento de que Tim sabia o risco que corria. A própria
Rede Globo, na década de 80, desmentiu esse argumento ao proibir que
seus repórteres corressem riscos de vida, logo após o episódio em que o
repórter Francisco José se ofereceu como refém e embarcou num carro sob
a mira das armas dos bandidos.

O centro da questão não é sequer a ética da câmera oculta, instrumento
próprio à ação da arapongagem, mas até aceitável como parte da atividade
jornalística em condições absolutamente extremas, quando se esgotam os
meios convencionais de apuração. Existem outros aspectos a examinar. Um
deles é o desvio do foco, ao se produzir da noite para o dia uma
celebridade - pois além de seus colegas, amigos e parentes, quem mais
conhecia Tim Lopes até a Globo transformar a morte dele em atração
nacional? A partir daí deflagrou-se um movimento de indignação que
ganhou o apoio até mesmo de entidades de defesa da atividade
jornalística em outros países. Ora, assassinatos nos morros cariocas
executados com requintes de crueldade existem às carradas, é só abrir o
jornal de hoje, de ontem, de amanhã para justificar a indignação e a
cobrança pelas providências dos poderes constituídos. Será que entendi
bem ou pirei de vez quando a leitura panorâmica que faço do episódio me
remete à perplexidade de admitir que, enquanto cidadãos, digamos,
comuns, são mortos a torto e a direito pelos traficantes, até aí tudo
bem, a gente vai levando. Até porque este tipo de morte não eleva
audiência mesmo, né? Mas, quando alguém de casa é atingido, então, aí
sim, chegou a hora de mexer céus e terras pra indignar o povão.

Que os bandidos matem umas centenas de pessoas por aí, vá lá, tudo bem,
a gente até noticia, principalmente quando o dia está fraco de notícias
de impacto e o jornal precisa de uma esquentadinha. Mas quando as balas
chegam ao nosso quintal e atingem nossos meninos, aí não...

Fenaj, ABI, OAB, alguém aí, por favor, me confirme: essa tal de ética
funciona assim mesmo ou nós, assim como o Eremildo do Élio Gaspari,
somos mesmo uns idiotas?

TELEJORNALISMO EM CLOSE é uma coluna semanal de análise de mídia,
projeto acadêmico do prof. Paulo José Cunha, do Dep. de Jornalismo da
Universidade de Brasília. Incentiva-se a sua reprodução, sob autorização
do autor. Para deixar de receber, retorne (REPLY) com a palavra
CANCELAR. PAULO JOSÉ CUNHA é jornalista, pesquisador e dirige o Centro
de Produção de Cinema e Vídeo da UnB. Clique aqui
(http://sites.uol.com.br/caid/index.htm) para visitar o site com a
coleção completa de TJ em Close e a correspondência dos leitores, links
para sites que também tratam de questões relacionadas de à mídia.


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