Cidade de Deus e do Diabo (08/07/2002) Por Luiz Eduardo Soares Estréia em fins de agosto um filme extraordinário: Cidade de Deus, de Fernando Meireles e Katia Lund, baseado no romance-testemunho homônimo de Paulo Lins. O livro é um painel incomparável em que se tecem, desde os anos 70, pequenas biografias obscuras que construíram a história da violência no Rio de Janeiro. O oceano de tragédias em que, hoje, naufragamos, foi, um dia, o drama localizado de alguns meninos, atropelados pela brutalidade e o despudor venal de policiais protegidos pela truculência da ditadura militar, no contexto do abandono das periferias e favelas por parte do poder público. Depois da época em que predominavam furtos e roubos quase inocentes, impôs-se o tráfico de drogas e armas, e o calvário que conhecemos.
O filme, fiel ao livro, relata com sensibilidade e crueza a complexidade humana e social dessa passagem. O comportamento dos protagonistas da fase "romântica" da violência urbana era uma variante rebelde dos códigos culturais que prevaleciam na comunidade. Hoje, os criminosos seguem regras próprias, inspiradas nos pactos que regem as organizações marginais. Os princípios fundamentais não eram questionados, nos sentimentos e na prática.Valia a autoridade dos mais velhos. A família era a referência decisiva. A vaidade regalava-se com um punhado extra de cruzeiros e a namorada cobiçada. O orgulho extraído da transgressão era inferior à vergonha provocada pela crítica social ao desvio descoberto. Não se cogitava em matar ou agredir. Não se ousava violar nada além do patrimônio, mesmo assim em doses homeopáticas, para nossos padrões atuais. O medo do pai, do juízo comunitário e da polícia superava a disposição de romper as regras do jogo. Sendo ainda depositária do respeito natural que se devota a qualquer grupo humano cumpridor de seus deveres, a despeito dos estigmas, a comunidade acolhia seus membros. Pertencer à comunidade era o disfarce suficiente para os meninos que roubavam, tanto que bastava, para enganar os policiais, misturar-se aos jogadores, em meio à partida de futebol no terreno baldio. O dono da birosca da esquina denunciava e era temido, não era o delator a ser humilhado e sacrificado. A droga ainda era a maconha, inspiradora da malandragem vagabunda, contemplativa e inócua -não era a cocaína, combustível insaciável da ansiedade. O fumo era o avesso da onipotência turbinada que hoje explode limites. As crianças eram repreendidas com um tapa na cabeça e a jocosidade dos adolescentes -não com tiros nas mãos e nos pés. A morte violenta era rara, chocante e surpreendente, fruto de crimes passionais; fruto, por exemplo, do orgulho doentio do migrante nordestino que não admitia o adultério. O desejo transgressor era a falta maior. A mulher era a principal vítima. Os primeiros traficantes, operadores do comércio varejista das drogas, armam um negócio que, ao contrário das práticas predatórias precedentes, é mais sedentária do que nômade, isto é, necessita de uma sede fixa para viabilizar seu êxito econômico. Além disso, precisa radicar-se em território protegido e capaz de garantir a segurança dos consumidores. Em outras palavras, o tráfico varejista, tal como estabelecido no Rio de Janeiro, não vende furtivamente seu produto nas esquinas escuras, sussurrando ao ouvido dos possíveis interessados. Vende nas "bocas". Defendê-las de eventuais competidores e garantir a segurança dos consumidores só se faz com armas, organização para usá-las e capacidade de implantar, no território e sobre a sociedade local, um sistema de poder com autoridade suficiente para disciplinar o uso da força e evitar a prática de crimes. Eis as bases sobre as quais se erguem as tiranias armadas locais, arbitrárias e belicosas, que só competem em crueldade com os segmentos corruptos das polícias. Ao invés de sair da comunidade para roubar -o filme descreve o assalto a um motel, limite da ousadia que caracterizava os "anos dourados"-, o novo protagonista, isto é, o traficante aguarda a visita dos "viciados", sintetizados por Tiago, o adicto que acaba cooptado. No caso do motel, antes de invadirem, mais assustados do que suas vítimas, os meninos fazem um juramento: não matarão. Querem diversão e grana. Gostam do risco e se encantam com a própria esperteza. Não são assassinos. Sua proeza é driblar lei e vigilância, penetrando um espaço que lhes está vetado por razões econômicas e invertendo a cena que retrata nossa hierarquia social. Se o roteiro previsto escapa ao controle é porque o futuro já se insinuava, gestado no coração partido da criança que representa o embrião do novo personagem. O futuro já estava no meio deles, cultivado pelo ressentimento de Dadinho, antecipação da ruptura que Zé Pequeno introduzirá na narrativa. O encontro Hamletiano com o profeta da Quimbanda inaugura simbolicamente o novo momento com o batismo em que o projeto gestado e intuído se atualiza: Dadinho recebe o nome de Zé Pequeno e se transforma no centro do mundo que emerge. A maldição abala de vez o título ironicamente tomista do bairro condenado à própria miséria. A cidade, agora, é do diabo. A linguagem cinematográfica indicia o novo horizonte imaginário: o diabo no meio de nós traz consigo o redemoinho discursivo, que suga os vários fios da trama. Antes, o enredo era animado pelo impulso centrípeto do crescimento das possibilidades dramáticas e pela ampliação dos caminhos dos personagens. Ante a ruptura, configura-se a força dramática centrífuga e progressivamente claustrofóbica da gravitação em torno do eixo mefistofélico. Zé Pequeno é o núcleo gravitacional da trama e se enfurna no covil que conquista, deslocando Cenoura para o papel de contraponto, antípoda de Zé no campo do mal, sustentáculo de seu protagonismo e homólogo estrutural de Bené, o traficante legal, cheio de bons sentimentos. Bené é o bandido mais "responsa", mais respeitado e querido da comunidade, que faz literalmente das tripas coração para evitar os confrontos, defender a vida e proteger os inocentes. Seu destino o leva à redenção antes da morte (morte por equívoco). Em outras palavras, sua trajetória o conduz à descoberta das virtudes do amor e da vida pacífica, cuja celebração instala o palco da tragédia precipitada pelo ardil da fortuna -versão carioca e suburbana da matriz clássica. Esse desfecho encerra o sentido claustrofóbico também na esfera da moralidade: não há mais espaço para a dialética bem-mal. Nada resiste à lógica uniformizante: Bené morre e Zé Galinha, que ensaia o papel de herói vingador, acaba tragado. Para vingar, rende-se à cooptação e reproduz a dinâmica de que fôra vítima. Termina atingido por sua própria trajetória refletida no espelho: renunciou ao emprego para vingar a crueldade de que fôra vítima, mas traiu o compromisso de jamais atingir inocentes, condenando o filho de sua vítima a repetir o seu percurso. Os destinos especulares cruzam-se na morte. Vítima e algoz encontram-se e trocam de posição, continuamente, até que a própria distinção perca sentido, porque é a agência mesma que se dissolve na reprodução inexorável da dinâmica acionada. O único sujeito dessa história é a voracidade autofágica e diluidora (de diferenças) que a desdobra; que a desdobra sempre una, idêntica a si, sem porosidade, contraponto, contradição e dialética: não há salto libertador, mudança de qualidade ou síntese transformadora. O triunfo da polícia será, finalmente, a vitória de mais uma infâmia, que contagiará Buscapé, o narrador-fotógrafo, réplica cinematográfica do narrador-escritor do livro de Paulo Lins. No filme, o narrador terá de ser o esperto caçador de imagens, Antonioni dos trópicos, cujo sucesso profissional lhe custará o silêncio cúmplice, a omissão das fotos mais reveladoras. Buscapé-narrador cumpre a dolorosa travessia das perdas: da menina desejada até a fama, cujo preço seria o risco de morte. Abrindo e fechando o filme, numa cena absolutamente memorável, a pomba dapaz submete-se à bricolage da invenção estética, essa cozinha de símbolos e sensibilidades, servindo à sublimação cultural que substitui a antropofagia oswaldiana pelo deslocamento irônico pós-moderno: transforma-se na galinha que escapa à degola, deslizando torrencialmente entre mãos, facas e balas zumbindo desesperada favela abaixo, driblando, sôfrega, os pneus do camburão para ver-se capturada pelo narrador, no momento em que divide a rua e se divide, internamente, entre policiais e bandidos, todos criminosos, todos sócios desse negócio infernal. Da galinha, não sabemos se voltou à festa como repasto. Zé Galinha não teve outra chance. Do narrador, sabemos que sacrificou a verdade pela vida sem risco -dando-nos, paradoxalmente, esse filme inesquecível, em que desvenda o que encobre. A paz e a liberdade voltam ao banquete para o sacrifício. A polícia vende armas e liberdade aos bandidos. Mas agora são as crianças que assumem o poder para brincar com a morte -pequenas deidades perversas e fragilíssimas. A sina segue sem saída, rua abaixo, goela abaixo, entre mãos, facas e balas, zumbindo desesperada favela abaixo, atrás de quê? Que mágica fizeram os diretores para converter meninos em grandes atores, não sei. Sei que uma obra-prima como Cidade de Deus nos dá uma lição: olhando bem de perto, pelo buraco da fechadura, com o voyeurismo persistente do fotógrafo-narrador, com a sensibilidade à flor da pele dos diretores e do autor do livro, é possível compreender que atrás da história com H maiúsculo da violência e do capitalismo cruel brasileiro há muitas histórias pequenas, do tamanho de cada um de nós, vividas por personagens que são muito parecidos conosco ou com algumas de nossas dimensões subjetivas, e que atualizam algumas de nossas possibilidades de ser. O resultado confuso e emaranhado das suas tramas individuais carrega a mesma dosagem de humanidade de que também nós somos capazes. Para o bem e para o mal. Nem mais, nem menos. ______________________________________________________________ O texto acima e' de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor, conforme identificado no campo "remetente", e nao representa necessariamente o ponto de vista do Forum do Voto-E O Forum do Voto-E visa debater a confibilidade dos sistemas eleitorais informatizados, em especial o brasileiro, e dos sistemas de assinatura digital e infraestrutura de chaves publicas. __________________________________________________ Pagina, Jornal e Forum do Voto Eletronico http://www.votoseguro.org __________________________________________________