O JUSTO E A JUSTIÇA POLÍTICA

Para os que vivemos a pregar à república o culto da justiça como o supremo
elemento preservativo do regímen, a história da paixão, que hoje se consuma,
é como que a interferência do testemunho de Deus no nosso curso de educação
constitucional. O quadro da ruína moral daquele mundo parece condensar-se no
espetáculo da sua justiça, degenerada, invadida pela política, joguete da
multidão, escrava de César. Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos
do dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz.

Aos olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e
nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Não há tribunais, que bastem,
para abrigar o direito, quando o dever se ausenta da consciência dos
magistrados.

Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do
papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade
afastava do seio de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com
inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o
universo, porquanto era na função de julgar que tinha a sua habitação entre
os israelitas a majestade divina.

Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde o
sentimento, que exatamente no processo do justo por excelência, daquele em
cuja memória todas as gerações até hoje adoram por excelência o justo, não
houve no código de Israel norma, que escapasse à prevaricação dos seus
magistrados.

No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes
da meia-noite de Quinta-feira, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer
da Sexta-feira subseqüente, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório
dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim,
foi o primeiro simulacro de formação judicial, o primeiro ato judicatório,
que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou
de dia.

Desde então, por um exemplo que desafia a eternidade, recebeu a maior das
consagrações o dogma jurídico, tão facilmente violado pelos despotismos, que
faz da santidade das formas a garantia essencial da santidade do direito.

O próprio Cristo delas não quis prescindir. Sem autoridade judicial o
interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na
maneira de inquirir; e a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a
justificar-se fora da lei: "Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre
ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse
nada às ocultas. Por que me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes
falei: esses sabem o que eu lhes houver dito". Era apelo às instituições
hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas
singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade
nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação. O apostolado de
Jesus era ao povo.

Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos.
Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os
seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao
pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no
ponto de vista legal: "Se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por
que me bates?"

Anás, desorientado, remete o peso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do
ano. Mas, ainda assim, não, não tinha a jurisdição, que era privativa do
conselho supremo. Perante este já muito antes descobrira o genro de Anás a
sua perversidade política, aconselhando a morte a Jesus, para salvar a
nação. Cabe-lhe agora levar a efeito a sua própria malignidade, "cujo
resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do
mundo, em que jamais pensou".

A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem
nos litígios civis, agrava-se então com o escândalo das testemunhas falsas,
aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era
especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais
falsos testemunhos que promovessem, lhe não acharam a culpa, que buscavam.
Jesus calava. Jesus autem tacebat.

Vão perder os juizes prevaricadores a segunda partida, quando a astúcia do
sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado.
Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia
resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar,
aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: Reus
est mortis. "Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a
blasfêmia". Ao que clamaram os circunstantes: "é réu de morte".

Repontava a manhã, quando a sua primeira claridade se congrega o sinedrim.
Era o plenário que se ia celebrar. Reunira-se o conselho inteiro. In
universo concilio, diz Marcos. Deste modo se dava a primeira satisfação às
garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da
publicidade. Com a deliberação da assembléia judicial, o requisito da
competência. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juizes legais. Mas
juízes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar
senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condenar,
deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses
tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde,
na assentada pública, a figura oficial do julgamento.

Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim
não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era uma
espécie de júri, cujo veredictum, porém, antes opinião jurídica do que
julgado, não obrigava os juizes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos
livres, para condenar, ou absorver. "Que acusação trazeis contra este
homem?" assim fala por sua boca a justiça do povo, cuja sabedoria jurídica
ainda hoje rege a terra civilizada. "Se não fosse um malfeitor, não to
teríamos trazido", foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos,
não querendo ser executor num processo, de que não conhecera, pretende
evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: "Tomai-o, e julgai-o segundo
a vossa lei". Mas, replicam os judeus, bem sabes que "nos não é lícito dar a
morte a ninguém". O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada
justiça dos perseguidores.

Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que
se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor
que se inculca filho de Deus: é o conspirador, que se coroa rei da Judéia. A
resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores.
Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das
instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. "Ao mundo
vim", diz ele, "para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da
verdade, há de escutar a minha voz". A verdade? Mas "que é a verdade"?
pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a da
inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro dessas
almas, onde reina o poder absoluto das trevas. "Não acho delito a este
homem", disse o procurador romano, saindo outra vez ao meio dos judeus.

Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da
sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de
Pilatos, mas desde Galiléia. Ora acontecia achar-se presente em Jerusalém o
tetrarca da Galiléia, Heródes Antipas, com quem estava de relações cortadas
o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a
amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada
pelos príncipes dos sacerdotes. Galiléia era o forum originis do Nazareno.
Pilatos envia o réu a Heródes, lisonjeando-lhe com essa homenagem, a
vaidade.

Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Et
facti sunt amici Herodes et Pilatus in ipsa die; nam antea inimici erant ad
invicem. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça.

Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta
sem sentença de Herodes a Pilatos que reitera ao povo o testemunho da
intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a
proclamava. Nullam causam inveni in homine isto ex his, in quibus eum
accusatis. O clamor da turba recrudesce.

Mas Pilatos não se desdiz. Da sua boca irrompe a Quarta defesa de Jesus:
"Que ma fez esse ele? Quid enim mali fecit iste?" Cresce o conflito,
acastelam-se as ondas populares. Então o procônsul lhes pergunta ainda:
"Crucificareis o vosso rei?" A resposta da multidão em grita foi o raio, que
desarmou as evasivas de Pilatos. "Não conhecemos outro rei, senão César". A
esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador
da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido pela febre,
crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus
últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples
suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu,
lavando as mãos em presença do povo: "Sou inocente do sangue deste justo".

E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não
compromete. A história premiou dignamente esse modelo da suprema cobardia na
justiça. Foi justamente sobre a cabeça do pusilânime que recaiu antes de
tudo em perpétua infâmia o sangue do justo.

De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções
da justiça, corrompida pela facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua
fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e
continuam a crucificá-lo, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada
vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do
povo e subversor das instituições que se imolou Jesus.

E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um
advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias
generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é esse, a ordem
pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juizes
tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Pôncio,
salvar-se, lavando as mãos do sangue, que vão derramar, do atentado, que vão
cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal,
subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de
estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não
escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação
para o juiz cobarde.

(A imprensa, Rio, 31 de março de 1899, em Obras Seletas de Rui Barbosa, vol.
VIII, Casa de Rui Barbosa, Rio, 1957, págs. 67-71.)


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