A certeza da urna é
totalitária
Démerson Dias
Inauguramos a
infalibilidade da máquina. A aprovação da lei 1503/03 que desabilita a impressão
do voto pela urna eletrônica desabilita por tabela parte da finalidade das
chamadas instituições democráticas. Também denuncia até onde chega a confiança
obtusa e cega na tecnologia. Se alguém duvidar ou questionar o resultado da
eleição, ajoelhe e reze pois a Justiça Eleitoral perde a prerrogativa de
conferir materialmente seu resultado.
Alguns podem
considerar essa linha de argumentação extravagante, mas a mera existência de um
sistema que não permite garantias recursais ou de revisão deveria impor a
necessidade de impressão do voto. Nega-se a razão em favor de mitos que talvez
sirvam muito bem à tecnocracia. Já os eleitores e candidatos, nos tornamos
reféns de algo que não podemos questionar porque seus pressupostos seriam (em
tese) inquestionáveis. Nesse debate nem todas as perguntas foram ouvidas e nem
todas as respostas foram sinceras.
Não vou abordar os
meandros da lei por falta de espaço, e outros o farão melhor que eu. Todavia
surpreende-me como um descuido dessa estatura ocorre diante do Poder Judiciário,
conhecido pela atenção aos detalhes e ritos processuais e por exaurir as chances
e possibilidades em cada situação e especificidade.
Mais que isso, a
magistratura endossa a redução da prerrogativa de certificar os resultados das
eleições materialmente. Qualquer um atesta um voto consignado em celulose e
tinta, já o impulso elétrico é imperceptível. Além disso evitamos
aqui aprofundar o debate filosófico quanto à validade dos poderes abrirem
mão de funções inerentes. Só esse debate já renderia uma tese de
livre-docência.
Quanto ao mérito,
supõe-se que as chances de erro são mínimas (ou inexistem) e que a principal
garantia é o empenho de setores da Justiça Eleitoral quanto à lisura do
processo. Descartaria de pronto o mínimo, pois eleição não é pesquisa de
amostragem.
Quanto à resultante
de um erro em potencial, podemos aceitar que a probabilidade de acidentes com
aviões é menor do que com automóveis. No entanto, a morte é algo absoluto seja
de avião, seja de carro. Em relação ao carro, a queda de um avião é
praticamente morte certa. Da mesma forma um erro inauditável nos lançará
num paradoxo, pois jamais e ninguém estará em posição de contestar a máquina. A
democracia virou escrava dos bytes. E o ser humano, programador, os fiscais e
auditores estão terminantemente proibidos de errar, pois não há juízo algum,
muito menos na máquina, para apurar e corrigir seus erros. A urna avoca, vincula
e decreta seus próprios feitos. Rito sumaríssimo e irretratável.
E ainda existe a
agravante que um erro ainda é diferente de intenção fraude que, inclusive viria
camuflada.
Mas a questão da
democracia neste debate transcende o aspecto eleitoral. Outro problema grave da
tese que apoiou o fim da impressão é o vício também totalitário de rotular os
que suspeitam do sistema de toda a sorte de vitupérios, inclusive alegar que
defenderiam implicitamente a volta às urnas de lona. Ora, se não bastam as
suspeitas quanto às intenções do lobby contra a impressão, alguns dos argumentos
que atentam contra a razoabilidade e deveriam chamar a atenção dos legisladores.
E como podemos abrir mão da razão em defesa da máquina e em favor (ou contra) da
democracia?
Pois os principais
questionamentos não partem de néscios ou desinformados, mas de pessoas que não
só trabalham com informática, mas são analistas e especialistas de sistemas de
informação e segurança. E são semelhantes aos elaborados pelo MIT e Caltech nos
EUA. Além destes, inúmeros advogados e até isoladamente alguns funcionários da
Justiça Eleitoral que arriscam confrontar a torrente devota da urna
incontestável.
A mim irrita
especialmente o obscurantismo em torno da defesa da não impressão. O
histórico de argumentações, inclusive de técnicos do TSE renderia um anedotário.
Já se disse que a urna é 100 % segura, coisa que nem a ficção científica
conseguiu produzir. E ainda se afiança o sistema pela segurança dos caixas
eletrônicos de bancos. Imaginemos se não emitissem extrato nem comprovantes!
Para não nos determos no fato de que o controle é individual e feito
imediatamente pelo interessado.
Esse exemplo
desmorona diante do fato de que as funções da urna são menos complexa do que as
de uma caixa registradora de supermercado. Mas imaginemos o caixa sem impressão.
Os setores de contabilidade que o digam. Considero o fim da impressão um descaso
inadmissível para com a democracia. Nos forçam a acreditar numa verdade sem
provas.
Se nem tais
argumentos comovem, vamos ao âmago da democracia. Deveria bastar o fato de uns
estarem defendendo o que lhes facilita o dever e outros reivindicando os
direitos que lhes assistem. Ou a eleição torna-se um fim em si, ou não resta
dúvida quanto à hierarquia desse direto e daquele dever. A não ser que a urna
também irá instaurar a exceção contra o Estado Democrático de Direito. Como pode
o cidadão perder o direito efetivo de inquirir o Estado sobre a parcela
essencial de sua vocação? Com base em que esse Estado pode negar atenção a esse
pleito?
De pitoresco, talvez
a pós-modernidade explique como pode o objeto subordinar o sujeito e tantos não
se darem conta. Há pouco tempo seria óbvio para todos que a máquina deveria
cumprir a vontade e necessidade humana. Neste debate ocorre o contrário. Como a
impressão é custosa e mais complicada (e que controle não é?) isso basta como
argumento.
Ora, se os
governantes, embalados pela urgência social quisessem que a urna imprimisse uma
nota de R$ 1,00 para cada voto depositado, não caberia objeção técnica acima da
política. Isso teria que ser viabilizado. Mas agora porque o setor técnico
envolvido obsta, (façamos que não há outros interesses) todo o meio
político, jurídico e até mesmo o bom senso é forçado a se curvar diante do
argumento de que imprimir é mais complicado, portanto, desnecessário.
Funcionários podem alegar que um voto com mais de três palavras é complicado e
custoso de se viabilizar e assim estará instaurado o laconismo no judiciário.
Melhor, o juiz dá a sua palavra e está feita a justiça.
A conferência
se tornou supérflua diante do impossível desafio de imprimir um reles elemento
de certificação do voto. A que ponto chegamos. Como não ocorreu a ninguém
perguntar se essa tecnologia, detida diante de tão reles desafio pode realmente
ser considerada útil e eficiente. Um simples comprovante!
Por um simples
comprovante abrimos mão da segurança e de um grau maior de certificação. O que
me parece inadmissível nesse contexto é o aspecto totalitário. Absolutamente
ninguém será capaz de dizer com certeza que a apuração é fidedigna. Basta que
durante o processo haja descuido sobre uma linha de programação em milhões, para
que todos sejamos ludibriados pela nossa profunda crença na mistificação da urna
infalível. A certeza custa mais caro, nesse caso a democracia é
secundária.
Démerson Dias é funcionário da Justiça
Eleitoral de São Paulo e Coordenador da FENAJUFE - Federação Nacional dos
Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União e do Sintrajud
- Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São
Paulo.
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