ENCAMINMHANDO:
Assunto: Sexta licitação: erro estratégico no
setor petróleo >> (14 tópicos)
Data: sábado, 24 de julho de
2004 19:59
Projeto de Análise da Conjuntura Brasileira
Laboratório de Políticas Públicas da Uerj
Fundação Rosa
Luxemburgo
Página na internet: www.outrobrasil.net
Economia e política econômica
César Benjamin, Paulo Metri e Rômulo
Tavares Ribeiro
Data do fechamento: 17 de julho de 2004
Tema do mês
Sexta licitação: erro estratégico no setor
petróleo
1. Um espectro ronda a economia mundial: novo choque
do petróleo. Choque
diferente dos anteriores, de um tipo que ainda
não conhecemos.
Na década de 1970, os preços do principal insumo
energético da nossa época
elevaram-se subitamente, duas vezes
consecutivas, por motivos essencialmente
políticos - primeiro a
guerra entre árabes e israelenses, depois a revolução
no Irã - com
múltiplas conseqüências sobre a economia mundial. O choque
atual é
menos espetacular, mais gradual, mas de conseqüências provavelmente
mais profundas e mais duradouras. É um choque estrutural.
2.
De um lado está o aumento permanente do consumo, seja pelo crescimento
normal das economias centrais, quase todas dependentes de importações,
seja
pelo crescimento rápido de grandes economias semiperiféricas,
como a China e
a Índia, igualmente dependentes de importações. Dos
países do chamado G-7,
apenas Canadá e Inglaterra são
auto-suficientes. A necessidade de
abastecimento externo é de 60%
para os Estados Unidos (que têm reservas
próprias para menos de cinco
anos) e 100% para Alemanha, França, Itália e
Japão. A China, que
consome 8% do petróleo mundial (contra 25% dos Estados
Unidos), foi
responsável por 37% do crescimento da demanda nos quatro
últimos
anos; na próxima década, terá dobrado o seu consumo e precisará
obter
no exterior mais de 80% de todo o petróleo de que necessita.
"Temos
debatido a concorrência da indústria chinesa e indiana
com a nossa indústria", escreveu o norte-americano Paul Krugman,
"mas um tipo diferente de competição - a competição pelo petróleo e
outros recursos - representa uma ameaça muito maior à nossa
prosperidade."
É alto, como se vê, o potencial de conflito
envolvido nessa questão. Junto
com o gás natural, a ele associado, o
petróleo responde por 2/3 da energia
total consumida no mundo (no
Brasil, graças ao peso da hidreletricidade,
essa proporção é de pouco
mais de 1/3).
3. O outro lado desse choque estrutural é a
incerteza sobre o volume das
reservas mundiais. Elas haviam sido
grosseiramente superestimadas e estão
sendo revistas para baixo.
Durante a recente epidemia de fraudes contábeis,
as mais respeitáveis
multinacionais do setor apresentaram números falsos
para elevar o
valor de suas ações. As reservas da Shell foram infladas em
24%, as
da El Paso em 33% e as da Enron em 30%. Diversos países fizeram o
mesmo, inclusive grandes produtores, como os Emirados Árabes, a
Arábia
Saudita e o México. Anunciaram a posse de jazidas entre 20% e
40% maiores do
que as verdadeiras, pois as quotas de produção,
definidas no âmbito da
Organização dos Países Exportadores de
Petróleo (Opep), são proporcionais às
reservas declaradas. Há muito
menos petróleo disponível do que se pensava.
4. Com a elevação
do consumo e a descoberta das fraudes, o mercado mundial
mergulhou em
grande incerteza. O barril custava cerca de US$ 13,00 em 2001;
passou
para cerca de US$ 28,00 em 2003; agora oscila em torno de US$ 40,00 e
não apresenta tendência consistente de queda. Ao contrário, autores
insuspeitos anunciam novas rodadas de alta. O embaixador Rubens
Ricupero já
advertiu sobre "a tendência a um aumento sensível e
contínuo no preço do
petróleo. O aperto nos preços (...) pode vir em
cinco anos, com mais um
choque elevando o barril a US$
50,00."
Krugman seguiu a mesma linha: "O mercado do
petróleo está distendido até o
limite da ruptura. (...) Na última vez
que os preços atingiram os níveis atuais,
pouco antes da Guerra do
Golfo (1991), havia capacidade de produção excedente no mundo, de modo que
havia espaço para enfrentar sérias perturbações da oferta, caso elas
surgissem. Desta vez isso não se aplica.
(...) Novas descobertas têm
sido cada vez mais raras. (...) Os preços do petróleo
estão altos e
podem subir ainda mais."
Paul Roberts foi ainda mais enfático:
"Estamos no limiar de um novo tipo de
guerra, entre aqueles que
têm energia suficiente e aqueles que não têm, mas
estão cada vez mais
dispostos a sair para buscá-la. Parece cada vez mais
provável que a
corrida por uma fatia das últimas grandes reservas de petróleo e gás
natural será o tema geopolítico dominante no século XXI."
Documentos do Departamento de Estado dos Estados Unidos parecem
confirmar
essa última opinião, ao conferirem grande destaque, na
escala de interesses do país,
à necessidade de "assegurar acesso
incondicional às fontes de energia e aos recursos
estratégicos".
5. Alguns especialistas prevêem que em
2010 atingiremos o auge da produção e
começaremos a ver o inevitável
declínio na oferta. A demanda, por sua vez, deverá
crescer 60% até
2020. Os mais assustados dizem que o barril poderá custar US$ 100,00
nessa época. Datas e números estão sujeitos a controvérsia, mas a
tendência é certa.
A produção de qualquer campo de petróleo segue uma
curva em forma de sino, que
atinge um pico e declina; como a soma
dessas curvas resulta sempre numa curva de
mesmo formato, a produção
mundial, que é a soma da produção de todos os campos,
também seguirá
uma curva do sino. A busca de novas jazidas (em terrenos ainda não
explorados, como as grandes profundezas do mar), a melhora nas técnicas
de extração
(para viabilizar a continuidade dos trabalhos em campos
hoje considerados exauridos)
e o uso misto de combustíveis
alternativos podem estender prazos, mas sempre às
custas de aumento
de custos. Isso quer dizer que, de qualquer maneira,
independentemente da polêmica sobre o esgotamento das reservas mundiais,
a era do
petróleo barato ficou para trás. Tudo indica que a tendência
dos preços passou a
apontar, definitivamente, para cima.
A
gerência dos recursos restantes e a alteração gradativa da matriz
energética
tornam-se, pois, problemas decisivos para as próximas
décadas.
6. O Brasil é um dos países mais bem-posicionados do
mundo para enfrentar
esse enorme desafio, seja do ponto de vista de
sua dotação de recursos, seja
de sua capacitação tecnológica, seja do
potencial para desenvolver alternativas.
Nossa oferta de eletricidade
é majoritariamente de origem hídrica, e mais da metade
do potencial
hidrelétrico permanece disponível para vir a ser utilizado. Nosso
extenso território tropical, com água e insolação abundantes, permite
intensa
produção de biomassa, fonte de combustíveis líquidos que
podem substituir a gasolina
e o diesel, com elevada produtividade.
Temos grandes reservas de urânio de boa
qualidade. O previsível
aumento de eficiência dos coletores de energia solar muito
nos
beneficiará.
Quanto ao nosso recurso energético mais escasso - o
próprio petróleo - construímos
em meio século uma impressionante
história de êxito, que ainda não foi plenamente
reconhecida. Na
trajetória econômica medíocre do Brasil nos 24 últimos anos,
destaca-se o excepcional desempenho da Petrobras.
Lutando contra
uma geologia adversa em terra firme, ela foi capaz de localizar e
operar jazidas importantes em alto-mar, tornando-se líder mundial em
tecnologia de
exploração em águas profundas. Graças a esse empenho e
competência, o Brasil tem
hoje reservas de 16 bilhões de barris,
suficientes para assegurar seu consumo
interno, nos níveis atuais,
durante cerca de dezoito anos. A auto-suficiência será
atingida em
2006.
Nesse aspecto, ocupamos uma posição intermediária no mundo. Nem
temos
reservas especialmente grandes, comparadas com o nosso consumo,
nem
dependemos crucialmente do mercado internacional.
7.
Uma conta simples mostra a importância do que já conseguimos fazer: se
as
décadas de 1980 e 1990 tivessem sido perdidas também no setor
petróleo, como
o foram na grande maioria dos demais setores da nossa
economia, de modo que
o Brasil necessitasse importar hoje a mesma
proporção de barris que
importava na época dos dois primeiros
choques, estaríamos gastando cerca de
US$ 23 bilhões por ano para
suprir o mercado interno. Todo o saldo comercial
brasileiro atual
teria de ser usado em petróleo, o que, literalmente, quebraria o país.
Nas duas décadas perdidas, conseguimos escapar dessa arapuca. Mas,
paradoxalmente, o
risco que corremos, em futuro não muito remoto, é
de retornar a ela, em uma
conjuntura internacional mais desfavorável.
Esse risco vem sendo construído a partir
do governo de Fernando
Henrique Cardoso.
Também aqui, o governo Lula apenas dá continuidade
ao desastre.
8. Três momentos sucessivos assinalam a alteração
do marco regulatório do
setor petróleo no Brasil, com o desmonte do
modelo anterior, reconhecidamente
exitoso. Em 1995, o Congresso
Nacional aprovou a emenda constitucional número 9, que
extinguiu o
monopólio da exploração pela Petrobras. Em 1997, a lei 9.478
regulamentou essa decisão e definiu as novas regras para o setor. Em
1998, foi
criada a Agência Nacional do Petróleo (ANP). Ao contrário
de outros países que
também passaram a admitir a participação de
empresas estrangeiras na exploração de
petróleo, a mudança feita no
Brasil não incluiu dispositivos que garantissem a
liderança do setor
por uma empresa nacional (na Noruega, por exemplo, a estatal
Statoil
continuou tendo prioridade para receber as melhores áreas, sem precisar
participar de licitações).
A Petrobras - que, até a promulgação da
nova lei, procurava e explorava petróleo em
todo o território
nacional - ficou confinada em 397 áreas, assim distribuídas: 231
correspondiam a campos em produção, 51 a campos em desenvolvimento e 115
a blocos em
prospecção, que passaram a ser chamados "blocos
azuis", selecionados pela própria
empresa e, por isso, os mais
promissores. Todas as demais áreas, que correspondem a
cerca de 90%
do território brasileiro, foram entregues à ANP para serem leiloadas. A
Petrobras recebeu prazo de três anos (depois estendido para cinco) para
colocar em
produção os campos em desenvolvimento e demonstrar a
comercialidade dos blocos em
prospecção, sob pena de ter de
devolvê-los também à ANP. O prazo vencia em agosto de
2003.
Quatro rodadas de leilões foram realizados durante o governo de
Fernando
Henrique, sempre sob fortes críticas do PT. A quinta rodada
foi preparada nesse
mesmo governo, mas realizada já depois da posse
de Lula, que a manteve, alegando que
não desejava interromper um
processo já iniciado, de modo a não contrariar
expectativas de
grandes empresas. O compromisso de campanha, no entanto, era claro e
reiterado: suspender novos leilões.
9. O trabalho de
prospecção progrediu muito lentamente na época em que a
Petrobras foi
dirigida por diretorias nomeadas por Fernando Henrique
Cardoso, como
se houvesse a deliberada intenção de levar a leilão aquelas
áreas
nobres, ou blocos azuis, que haviam permanecido sob controle da
empresa. Com a posse da nova diretoria, em janeiro de 2003, o trabalho
foi
intensificado e resultou na descoberta - que já era esperada - de
6,6
bilhões de barris em áreas que seriam devolvidas à ANP em agosto.
Este foi o
aspecto mais positivo da nova gestão. As reservas
comprovadas brasileiras
aumentaram em mais de 50%. Mas, não houve
tempo para perfurar tudo. Parte
significativa dos blocos azuis teve
de ser entregue à ANP, entre as quais
70% do BC-60 da Bacia de Campos
(na área norte, correspondente a 30% do
bloco, já foram encontrados 2
bilhões de barris) e o Espírito Santo número
12 (onde se estima
existirem 4 bilhões de barris).
Contrariando o posicionamento
histórico do PT, o Ministério das Minas e Energia do
governo Lula
determinou que a ANP deflagrasse o processo que levará à sexta rodada
de licitação, prevista para 15 de agosto, nela incluindo esses blocos
azuis,
considerados bilhetes premiados. Entre 3,3 bilhões de barris
(estimativa oficial) e
6,6 bilhões de barris (estimativa de técnicos
da Petrobras) das reservas brasileiras
serão leiloados de uma só
vez.
10. São falsos os argumentos apresentados para defender o
leilão, a saber:
(a) Seria necessário atrair mais recursos para o
setor. Como vimos, a Petrobras
garantirá a auto-suficiência a partir
de 2006, antes que as áreas agora licitadas
entrem em operação. Com
US$ 9 bilhões disponíveis, a empresa brasileira tem recursos próprios mais
do que suficientes para investir de forma planejada, otimizando o uso das
reservas conforme os interesses estratégicos do país;
(b)
Precisaríamos ter acesso a novas tecnologias. Trata-se, aqui, da repetição
de um
fetiche, pois o que ocorre nesse caso é justamente o contrário.
As empresas
estrangeiras que começaram a entrar no Brasil sempre
buscam alguma forma de
associação com a Petrobras, pois a melhor
tecnologia é a dela. Além disso, não era
necessário alterar a
Constituição do país para isso, pois parcerias tecnológicas
sempre
existiram.
(c) Seria urgente fazer novas descobertas para manter
constante a relação
reservas / produção (R / P). Ninguém discute que
vários blocos a serem
leiloados na sexta licitação têm muito
petróleo, de modo que haverá apenas a
confirmação de reservas, que
passarão de prováveis a provadas. Ora, se essas
áreas entrarem em
produção sob controle de empresas estrangeiras, com as
regalias que a
lei brasileira lhes faculta (propriedade plena do óleo extraído e
decisão autônoma de exportá-lo), as reservas não poderão mais ser
computadas como brasileiras, de modo que leilões vencidos por
multinacionais nunca poderão influir positivamente na relação R / P.
Note-se, ainda, que, quando detinha o monopólio, a Petrobras realizava
dentro da economia brasileira, em média, 85% das compras necessárias ao
desenvolvimento e exploração de um campo marítimo e 100% das compras
destinadas a equipar um campo terrestre. As empresas multinacionais que
participaram da penúltima rodada de licitações (não há dados disponíveis
para a última) comprometeram-se a realizar compras locais no valor médio
de 38% do dispêndio total para campos marítimos e 68% para campos
terrestres. Os efeitos multiplicadores dos investimentos da Petrobras na
economia
brasileira são muito maiores.
(d) Precisaríamos
aumentar a competição no setor para conseguir preços
menores. Ocorre,
nesse caso, justamente o contrário. O modelo competitivo e
aberto
transforma o mercado brasileiro de petróleo e derivados em uma
extensão do mercado internacional, de modo que os preços nos dois
ambientes
permanecem equiparados. O trabalhador brasileiro, hoje,
paga pelo gás de
cozinha (GLP) o mesmo preço pago por um trabalhador
alemão. Mantendo-se o
modelo anterior e atingindo-se a
auto-suficiência, o mercado interno brasileiro
poderia ser isolado
dos choques internacionais, com a Petrobras sendo remunerada
pelos
seus custos (mais uma rentabilidade adequada), de modo a defender a
economia brasileira como um todo.
11. Pela lei em vigor, todo o
petróleo a ser extraído passa a pertencer às
empresas vencedoras das
licitações, que ganham automaticamente o direito de
exportar a
quantidade que desejarem. Como estamos às vésperas da auto-suficiência, as
áreas que o governo Lula vai leiloar só poderão entrar em operação para
abastecer o mercado externo, pois haverá excesso de produção. É um erro
grave. A geologia brasileira é desfavorável à ocorrência de petróleo, de
modo que não devemos esperar que grandes descobertas se sucedam. Se o
Brasil passar à condição de exportador, o horizonte da auto-suficiência
será drasticamente reduzido, com o país podendo retornar à posição
importadora em menos de uma década, justamente quando a competição mundial
pelo petróleo estará mais acirrada e os preços, mais altos. (Em situações
de emergência, a lei prevê que o governo pode exigir prioridade ao
abastecimento do mercado interno por trinta dias, pagando, no entanto, o
preço em vigor no mercado internacional; isso equivale a uma importação,
pelo Brasil, de petróleo brasileiro.)
A propriedade de campos
petrolíferos, nas próximas décadas, será muitíssimo
lucrativa.
Façamos mais uma conta, utilizando a estimativa mais conservadora, que
afirma a existência de "apenas" 3,3 bilhões de barris nas
áreas a serem licitadas. A
vida útil de um campo oscila normalmente
entre 15 e 20 anos. Se supusermos o preço do barril de petróleo em US$
50,00 nos próximos anos, conforme a previsão do embaixador Rubens
Ricupero, estamos falando da entrega, a empresas privadas, de um negócio
de US$ 89 bilhões de dólares, já descontados todo o investimento, todo o
custo de operação e todos os impostos e taxas. Se supusermos o preço em
US$ 75,00, estamos falando de um lucro líquido de US$ 134 bilhões. Com a
sexta licitação, corremos o risco de retirar da Petrobras e repassar a
empresas privadas um valor provavelmente situado entre esses dois números,
ambos gigantescos.
12. A questão de fundo é a seguinte:
pressionado pela necessidade de fazer
vultosos pagamentos externos
nos próximos anos, o Brasil resolveu tratar
como uma commodity comum,
a ser incorporada em sua pauta de exportações,
aquele que é o
principal recurso estratégico das economias modernas. Um
recurso
finito, não renovável, do qual temos reservas apenas suficientes,
nunca sobrantes. Receberemos impostos sobre o valor exportado e
repassaremos
esses recursos aos nossos credores internacionais.
Assim, o governo Lula optou por
usar o petróleo brasileiro como
lastro para manter em dia o pagamento de dívidas
financeiras, mesmo
com o ônus de produzir um esgotamento precoce das nossas
reservas.
Como vimos, esse esgotamento, se vier a ocorrer, terá conseqüências
dramáticas sobre a economia real e as contas externas do país, que se
tornarão
inadministráveis.
A posição brasileira está na
contra-mão do que ocorre no mundo. O aumento de
preços tem sido
compreendido, por todos os países, como um sinal de que o
petróleo é
um produto estratégico e finito, e por isso a disputa pelas reservas
nunca foi tão intensa. As guerras no Oriente Médio, a crescente tensão
no Cáucaso,
as disputas entre China e Japão pelo traçado do oleoduto
siberiano e as tentativas
norte-americanas de desestabilizar o
governo da Venezuela são apenas a ponta de um imenso iceberg. Só o governo
brasileiro parece fazer a leitura de que o aumento de preços deve ser
aproveitado para queimar reservas escassas e fazer caixa o mais
rapidamente possível.
Tal decisão, no mínimo ingênua, poderá ter
desdobramentos insuspeitados. Em
pleno desenvolvimento do que
chamamos de "choque estrutural do petróleo" -
um choque
que, como vimos, será prolongado -, o Brasil está se dispondo a
entregar a empresas multinacionais a propriedade de campos situados
em
alto-mar, garantindo a elas a livre disposição sobre o petróleo
extraído. Os
contratos com essas empresas têm trinta anos de duração.
Se, nesse período,
em uma situação de crise, o país tentar retomar o
controle sobre esses
campos (para garantir o abastecimento interno,
por exemplo), poderá ver-se
envolvido em um contencioso internacional
muito desfavorável, até mesmo pela
falta de meios para defender sua
soberania nessas áreas. Se resolver mudar a
lei, não poderá fazê-la
cumprir. "Numa situação de grande tensão mundial,
com crescente
escassez de petróleo, no futuro as forças armadas brasileiras
não
terão poder de dissuasão para evitar que plataformas de petróleo
operadas por empresas estrangeiras, em nosso mar territorial, entreguem
suas
produções para petroleiros que a levem diretamente para o
exterior", alertou
recentemente o brigadeiro Sérgio Xavier
Ferolla.
Por precaução com a nossa soberania, o controle e a
propriedade dos campos
situados na plataforma marítima deveriam caber
exclusivamente à Petrobras.
13. A sexta licitação será
realizada sem que nenhum órgão público tenha
apresentado um estudo
sobre o suprimento de petróleo ao país no médio e
longo prazos. Mais
ainda: o país não dispõe de um planejamento energético de
caráter
estratégico. Está parado no Senado Federal, desde junho de 2001, um
projeto de lei muito simples e de grande bom senso, proposto pelo
senador
Saturnino Braga (PT-RJ), que diz apenas o seguinte:
"Ficam suspensas as
licitações de novas áreas para exploração de
petróleo, até que o Congresso
Nacional aprove o planejamento
energético do país, a ser proposto pelo
Conselho Nacional de Política
Energética."
A nosso ver, tal planejamento estratégico deveria,
pelo menos:
(a) racionalizar e otimizar o uso do potencial energético
disponível, tendo
em vista as necessidades de médio e longo prazos,
combinando-se nesse
projeto o uso de fontes tradicionais
(hidreletricidade, petróleo, nuclear) e
alternativas (biomassa,
solar, bagaço de cana, eólica), além de definir
políticas de
conservação. Os recursos não renováveis deveriam ser objeto de
tratamento cuidadoso;
(b) utilizar o próprio setor energético como
instrumento de indução ao
desenvolvimento, não só por fornecer
energia, mas também por maximizar suas
compras dentro do espaço
econômico nacional e reinvestir nele o lucro
obtido, gerando empregos
e promovendo o desenvolvimento tecnológico;
(c) ampliar e
diversificar o potencial disponível por meio de políticas de
integração da América do Sul. Assim como a Comunidade Européia do Carvão
e
do Aço, criada depois da Segunda Guerra Mundial, foi o embrião do
Mercado
Comum Europeu, que por sua vez desdobrou-se na União
Européia, a enorme
capacidade de oferta e a complementaridade de
fontes energéticas (algumas
das quais não comercializáveis no mercado
mundial) podem desempenhar um
papel-chave em um processo de
integração do nosso continente;
(d) preparar um salto à frente da
economia brasileira dentro do sistema
mundial. País tropical de
grande dimensão territorial, o Brasil, como vimos,
é um lugar
privilegiado para assumir uma posição de destaque na mudança da
matriz energética nas próximas décadas.
14. Nada disso está
sendo feito. A divisão internacional de trabalho que se
desenha neste
início de século reforça a posição dos países centrais como
produtores de bens e serviços de alta tecnologia, transfere para o Leste
da
Ásia a dinâmica manufatureira e conduz a América Latina a
especializar-se de
novo em atividades primárias e exportação de
recursos naturais. A decisão de
usar o petróleo brasileiro,
relativamente escasso, para encorpar no curto
prazo os resultados da
balança comercial confirma que estamos dispostos a
aceitar esse
retrocesso, que traz riscos imensos à sociedade brasileira.
Lamentavelmente, também nesse aspecto, o governo Lula é uma decepção
sem
tamanho.