|
De marcha a ré |
|
Por Fernando Henrique Cardoso |
|
Há um velho ditado que diz: "quem avisa,
amigo é". Pois bem, gostaria que este artigo fosse tomado como um alerta
amistoso e não como crítica "a tudo isso que se está fazendo", que não é
do meu estilo. Mas alerta de quem está seriamente preocupado com os rumos
do país.
Não quero referir-me à conjuntura econômica, que vai bem,
obrigado, começando a desanuviar o fantasma do desemprego e aumentando o
consumo interno. Bom para o povo e para o país. Menos ainda à discussão
sobre se o Brasil recuou ou não no ranking recente do Índice de
Desenvolvimento Humano. O IDH brasileiro melhorou razoavelmente, a
despeito da escolha questionável dos dados entregues à ONU. Sempre haverá
quem, de maus bofes, coloque um adjetivo, "lentamente" ou "pouco", diante
dos avanços ocorridos, sem comparar com qualquer dado do passado ou com
avanços sociais em outros países. Isso faz parte da índole de quem, não
pondo a mão na massa, mas sendo torcedor do povo e do país, tem pressa. Eu
também a tenho e me junto sem dificuldade a esse clamor. Não sem dizer:
não consegui fazer tudo o que era necessário, mas fiz bastante nas
condições dadas. A própria ONU, por intermédio do PNUD, reconheceu os
esforços, dando ao Brasil em 2002 o prêmio Mahbub ul-Haq como o país de
melhor desempenho relativo nessa matéria.
Minhas preocupações são
outras. Levamos muitos anos lutando contra o regime autoritário e agora,
pouco a pouco e sem prévio aviso, vamos retomando práticas administrativas
que lhe eram próprias. Não tanto no aspecto do que se chama de
"aparelhamento" da máquina pública por forças partidárias, pois o regime
autoritário tinha horror aos partidos, mesmo ao que o apoiava. Nesse
aspecto, a administração atual está mais próxima do que foi chamado nos
Estados Unidos de spoil system , ou seja, o butim do estado que os
partidos de lá praticavam nos áureos tempos da corrupção dos Tammany Hall,
mudando toda a administração depois de cada vitória eleitoral. Sistema não
muito diferente do que faziam (e fazem) aqui os mandões locais quando
ganham uma prefeitura.
Refiro-me à volta atrás na administração
descentralizada, no respeito às regras da federação e, de cambulhada, à
diminuição do zelo republicano com a transparência e o controle, que se
verifica tanto em coisas supostamente menores, como a escolha de dados
estatísticos, quanto em coisas sabidamente maiores.
Custou caro
desfazer as máquinas burocráticas enlaçadas com interesses privados (os
anéis burocráticos, como os chamei) ancoradas nos grandes ministérios,
sobretudo nos sociais, como o da Educação e o da Saúde, mas não só neles.
Descentralizar a merenda escolar, dar mais voz à comunidade para controlar
o uso das verbas, endereçar os recursos diretamente às escolas, ou, no
caso do Ministério da Saúde, colocar de pé o SUS, que existia só no papel
e, respeitando os estados, entrosar os municípios com a União, sem
transformá-la em feitora e sem estabelecer uma relação clientelística com
os prefeitos.
Pois bem, ao ler a proposta em discussão no
Congresso que cria a possibilidade de constituir "consórcios públicos",
fica-se com a pulga atrás da orelha. Ela dá novo sentido à organização
federativa, sem anunciar que está fazendo isso. Pela Constituição de 1988
o Brasil se compõe de três entes federados: União, estados e municípios. O
novo na Constituição foi a força dada aos municípios: tributação própria,
faculdade de legislar privativa ou concorrentemente com os estados e a
União, tribunais específicos para prestar contas, etc. A luta pela
redistribuição dos impostos e pela autonomia das decisões foi constante
durante o regime autoritário. Embora não se tenha logrado uma
redistribuição organizada de recursos e obrigações, a tendência até agora,
pelo menos no papel, era a de avançar na descentralização e no respeito à
autonomia dos estados e municípios.
O projeto de lei em causa
reverte isso. Os chamados "consórcios públicos" passam a ser uma
"associação pública" (uma inovação) que junta dois ou mais entes da
federação e ganha o estatuto de pessoa jurídica de direito público,
integrando a administração indireta dos entes associados. Resultado: a
União poderá formar com um município qualquer, à revelia dos estados e dos
outros municípios (estes também poderiam, só que não dispõem dos recursos
financeiros), uma nova entidade federativa, como se fosse uma autarquia ou
uma sociedade de economia mista, e passará a canalizar recursos
diretamente a ela.
Tudo isso já seria muito complicado. Mas tem
mais e é neste ponto que o republicanismo cora: as associações públicas
poderão outorgar concessão, permissão ou autorização de obras e serviços
públicos e suas atividades podem ter dispensa de licitação! Não contentes
com criar novos entes federativos, dá-se-lhes poderes que são privativos
de outros entes federativos (por exemplo, o de definir uma microrregião ou
quem sabe uma região metropolitana) e a faculdade de operar com regras de
licitação não-específicas.
A isso se juntam os clamores já ecoados
no editorial de "O Estado de S. Paulo" de 19 de julho último, "Ligações
Espúrias", sobre as Parcerias Público-Privadas, as PPP. Elas darão margem
eventualmente à "licitação dirigida" e a uma contabilidade paralela,
abrindo espaço para que governo, empresários e partidos entrem em
estranhas e perigosas ligações, sob a condução de um poderoso Comitê
Gestor. As propostas para acelerar os investimentos em saneamento, também
em discussão no Congresso, vão na mesma linha de "inovação", permitindo
laços diretos entre a União e municípios escolhidos.
Se somarmos a
tudo isso as propostas do BNDES de alavancar grandes projetos de
infra-estrutura com dinheiro público ou de empresas públicas, favorecendo,
queira-se ou não, os agentes econômicos escolhidos, a sensação é de marcha
batida à ré depois do grito de "direita, volver!".
Parece que se
busca o que tanto combatemos na época do general Geisel, o mais operoso
dos presidentes militares com a mesma inspiração
arbitrário-estatal-desenvolvimentista. Tomara nos livremos desse entulho
outra vez. E que o PT e seus dirigentes se lembrem de sua própria
história, quando coisas do tipo das acima indicadas eram vistas como um
retrocesso autoritário e um escândalo moral.
|
|
|
Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente
da República |
|
O
Globo |
|