O Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, atualmente Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores, faz uma análise nesse extenso artigo publicado na "Carta Maior" que é imperdível. Além de atualíssima, é uma das análises mais lúcidas sobre a questão da América do Sul e da Amazônia - diante da cobiça dos EUA. Não deixem de ler e passar adiante.

Osvaldo Maneschy

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Amazônia, paraíso perdido

* Samuel Pinheiro Guimarães

O habitante do Sudeste tende a considerar a população e o território brasileiros ou como um tesouro, fácil de explorar, que só a corrupção e a ineficiência impedem, ou mais freqüentemente como uma espécie de ônus, pois o Brasil é muito grande, tem muita gente. Em geral, não tem consciência das vantagens de um território continental nem de uma grande população. A Amazônia corresponde a sessenta por cento do território terrestre brasileiro, cerca de cinco milhões de quilômetros quadrados, enquanto é habitada por apenas cerca de onze por cento da população brasileira, que se concentram em dois centros urbanos, Belém e Manaus.

Na Amazônia se encontram a mais extensa floresta tropical do mundo, que encerra a maior biodiversidade do planeta, o maior estoque de água doce, e recursos minerais extraordinários ainda que em sua enorme maioria desconhecidos com precisão, pois apenas dez por cento do território amazônico foi mapeado geologicamente. Na Amazônia se encontram 13.190 quilômetros de fronteira terrestre do Brasil, oitenta e cinco por cento do total das fronteiras brasileiras, que são nossos limites com seis países sul-americanos e com a França.

De seu lado, o Nordeste corresponde à mais antiga região habitada do território brasileiro onde vivem e sobrevivem, em condições de pobreza crônica, no semi-árido e em periferias urbanas miseráveis, cerca de vinte e dois por cento do povo brasileiro, em um território de dois milhões de quilômetros quadrados, cerca de 25% do território nacional, com um regime climático em grande parte semi-árido e com grande irregularidade pluvial, mas para cujos desafios há soluções menos complexas, inclusive pela ausência de interface com outros países. Assim, apesar de todas as dificuldades da organização geoeconômica do Nordeste, enfrentar o desafio amazônico talvez seja o mais complexo e mais urgente desafio para o Estado brasileiro e o desafio mais decisivo para o futuro da sociedade brasileira. Deveria, por isto, receber a atenção prioritária que não tem recebido.

O ambiente internacional para a Amazônia

Hoje em dia, muito mais do que ocorria até o passado recente, o ambiente internacional para o Brasil, e para a Amazônia em particular, tem influência decisiva sobre o futuro, do país e da região. Primeiro, a situação política, social, econômica e militar nos seis países com que a Amazônia faz fronteira; segundo, a pressão internacional para controlar a Amazônia, que se exerce hoje através de agências internacionais, de ONGs e da estratégia diversionista de Estados estrangeiros, com padrões de consumo e produção insustentáveis e detentores de grandes recursos financeiros e tecnológicos; terceiro, o tráfico internacional de drogas e seus efeitos sobre o sistema financeiro e político; quarto, a presença militar e a ação americana nos países vizinhos; quinto, as políticas econômicas contracionistas e de viés antidesenvolvimentista dos governos federais que dificultam a realização de programas de desenvolvimento das regiões atrasadas; e sexto, a omissão por vezes interessada do Estado diante da ação de grandes empresas nacionais e estrangeiras, principais responsáveis pelo desmatamento amazônico.

De todos esses fatores, talvez o principal seja a presença militar americana na região, a militarização do combate à droga e a possível internacionalização de conflitos internos existentes ou latentes de Estados vizinhos em direção ao Brasil. A situação nos países vizinhos é, a todos os respeitos, crítica. Após anos de neoliberalismo econômico e de democracia formal, e da colheita do fruto ilusório da estabilidade da moeda, os indicadores econômicos e sociais revelam a persistência de situações estruturais que se encontram na raiz de conflitos que irrompem cada vez com maior freqüência por toda a parte. Nas fronteiras mais ao sul do Brasil, a situação poderia vir a ser semelhante, ainda que não tão grave, o que pareceria, à primeira vista, não afetar a Amazônia. Todavia, devido aos vínculos entre as economias brasileira e dos países vizinhos ao sul, as dificuldades para superar crises econômicas ou a instabilidade social teriam profundas consequências para a economia e a política econômica brasileira em geral, o que, por sua vez, reduziria ainda mais a capacidade do Estado brasileiro de atuar na Amazônia e de assim iniciar o enfrentamento sistemático de seus desafios.

“As políticas econômicas nos países da América do Sul foram em extremo semelhantes por terem tido sua inspiração comum nos princípios do Consenso de Washington”

As políticas econômicas nos países da América do Sul foram em extremo semelhantes por terem tido sua inspiração comum nos princípios do Consenso de Washington articulado entre academia, megaempresas multinacionais, organismos internacionais e do Governo americano como solução para a América Latina. Deveriam promover a abertura e desregulamentação da economia através de redução de tarifas e a liberalização cambial; a redução da capacidade de ação do Estado; a privatização radical; o ajuste fiscal rigoroso e implacável; políticas de âncora cambial; a flexibilização dos mercados de trabalho; a eliminação de reservas de mercado para o capital local e o tratamento privilegiado ao capital estrangeiro. Em resumo: o Consenso advogava o livre jogo das forças de mercado em todos os mercados, com viés favorável ao estrangeiro e às empresas megamultinacionais, sem nenhuma distinção para regiões complexas.

No campo político, todos os Estados da região foram induzidos a promover reformas para aumentar o poder político do Executivo Federal, inclusive adotando a possibilidade de eleição presidencial por dois (porém somente dois) mandatos consecutivos; para reduzir a influência política do Congresso (e do povo) que teria supostamente natureza corporativa, atribuindo poderes legislativos ao Executivo e criando agências tecnocráticas, as chamadas agências reguladoras de natureza econômica; para reformar o Judiciário para discipliná-lo e enquadrá-lo no apoio às novas políticas; para reduzir o efetivo e a influência das Forças Armadas, cuja tendência nacionalista poderia prejudicar a execução da nova estratégia econômica neoliberal.

As políticas executadas pelos Governos neoliberais na América do Sul e na região amazônica não atingiam o cerne da questão econômica, que é a construção e o desenvolvimento do mercado interno e o fortalecimento da coesão social. Fundaram suas esperanças em uma inserção retrógrada no mercado internacional, tentando uma volta aos anos dourados da exportação de produtos primários e da fictícia estabilidade do padrão-ouro, através de novos avatares, como foi o currency board (caixa de conversão) argentino. A abertura radical de suas economias ao capital multinacional e as privatizações aceleradas causaram o enfraquecimento empresarial local e a desestruturação dos já frágeis Estados nacionais, gerando, de outro lado, temporariamente, grandes ingressos de capital estrangeiro, o que os iludiu.

As megaempresas multinacionais adquiriram e modernizaram unidades produtivas, mas em muitos casos os investimentos se concentraram no setor de serviços e de non-tradeables. Todavia, nesse processo pouco expandiram a capacidade instalada, gerando maior desemprego industrial sem reduzir o desemprego estrutural, não ampliaram as exportações, aumentaram as importações desses países e aprofundaram sua dependência tecnológica.


De forma artificial e na aparência, os Governos dos países da região alcançaram êxito em controlar a inflação através de rigorosos ajustes fiscais, do ingresso de capital estrangeiro e da liberalização de importações. Suas políticas geraram um ingresso rapinante de capitais especulativos de curto prazo, atraídos por elevadas taxas de juros e por sistemas cambiais desregulamentados, na realidade descontrolados, com mecanismos do tipo da conta CC-5, e de investimentos diretos oportunistas, atraídos por uma miríade de isenções, créditos e oportunidades, que absorveram as empresas locais e contribuíram para uma fictícia estabilidade cambial e de preços. Os responsáveis pelas políticas econômicas, as chamadas equipes econômicas, aparentemente consideraram as entradas de capital estrangeiro como doações ou como magicamente indutoras da capacidade de gerar divisas que viessem a compensar as futuras e inevitáveis saídas de capital.

Assim, se garantiu a felicidade inicial das diminutas e deslumbradas classes médias em cada país, que conquistaram a liberdade e o direito de importar e consumir produtos sofisticados, classes essas que, aliás, haviam apoiado anteriores tentativas de implantar modelos econômicos liberais, até mesmo quando acompanhados de regimes políticos autoritários.

As classes pobres foram atendidas pelo neo-assistencialismo da distribuição de alimentos e por outros esquemas semelhantes de solidariedade, anestesiadas pela liberdade irrestrita conferida à televisão hipnótica e alienante que invadiu o vazio cultural, iludidas por estratégias paliativas de luta pelos direitos humanos que, em realidade, não enfrentam as causas reais das violações nem da criminalidade de que são os pobres as principais vítimas.

As classes privilegiadas e poderosas se viram, no primeiro momento, aliviadas pelo hábil afastar, ainda que efêmero, das reivindicações de redistribuição de renda e riqueza, substituídas pelo culto à estabilidade da moeda, pela difusão da crença em sua capacidade de resolver todas as questões do subdesenvolvimento e pelos apelos a uma luta (superficial) contra a pobreza. Muitos venderam suas empresas ao capital estrangeiro avassalador e passaram (ou continuaram) a se inserir familiarmente no Primeiro Mundo, através do uso de seus sistemas de educação (famosas escolas e universidades para os filhos), de lazer (museus, restaurantes, concertos, tv a cabo, Disney World), de saúde (hospitais e clínicas da mais avançada tecnologia), em uma situação que muito se assemelha ao que faziam no passado os proprietários absenteístas das fazendas de açúcar, de café e de cacau que as entregavam a administradores e viviam faustosamente no litoral e na Europa. Com o câmbio fixo ou quase fixo, seus proventos de rentistas do Estado ficaram estáveis em moeda forte e, tendo transferido parte de seu capital para o exterior, a situação política e social os preocupa cada vez menos e até mesmo a perspectiva de crise final dessas políticas - econômica, social e política estrito senso - insustentáveis não é temida.

O sistema econômico vai à falência periodicamente (as crises), pois de um lado se baseia na acumulação de compromissos financeiros a taxas de juros elevadas, de exploração oligopolística do mercado a lucros astronômicos, na venda precipitada e corrupta de um estoque finito de ativos, na contração do mercado interno e, de outro lado, não foi capaz durante longo tempo de gerar em volumes crescentes não só produção exportável nova mas superávites não contracionistas. A escassez latente de divisas para enfrentar os compromissos, ao quase materializar a crise, provoca operações apressadas de sustentação prévia que se fazem à custa de novos e novos pacotes de assistência financeira, organizados pelo FMI, sempre em troca de maiores compromissos de liberalização e de restrições à autonomia nacional de gestão econômica.

Assim, a situação em todos os países vizinhos da região amazônica e com o Brasil fronteiriços apresenta características muito semelhantes: longa estagnação ou lento crescimento econômico, compromissos externos elevados, alta vulnerabilidade a flutuações externas, desarticulação do Estado, pressão externa renovada para que adotem políticas ainda mais neoliberais e contracionistas, desemprego elevado, crime organizado e violência urbana, inchaço incontrolável das cidades, incapacidade do Estado de atender às demandas sociais, inquietação política acentuada.

A insatisfação com os regimes democráticos é crescente e inquietante, pois são eles cada vez mais vistos pela população como formais e pseudo-populares por serem antinacionais (globalizantes), elitistas e autoritários (soft) em sua essência. As massas dos países da região, em que a percentagem abaixo da linha de pobreza crônica (não ocasional) há gerações é sempre elevada e onde a pobreza tende a ser maior em suas regiões amazônicas, têm grau de politização extremamente baixo e como principal objetivo a sobrevivência quotidiana. Sua participação política na democracia é reduzida e cíclica. A ela se agregaram faixas crescentes da classe média empobrecida, onde o individualismo e as expectativas de progresso material haviam sido estimuladas pela mídia. Sua frustração, inclusive com seu empobrecimento relativo, seu receio diante da pobreza e violência crescente nos centros urbanos fazem com que passem a apelar cada vez mais por ordem e emprego, saudosas do passado.

“Os centros do poder mundial articulados às estruturas de poder local estimulam a renovação de lideranças políticas desgastadas tais como viriam a ser Salinas de Gortari, Menem e Fujimori, inclusive para garantir a sobrevivência do modelo econômico”

Periodicamente, os centros do poder mundial articulados às estruturas de poder local estimulam a renovação de lideranças políticas desgastadas tais como viriam a ser Salinas de Gortari, Menem e Fujimori, inclusive para garantir a sobrevivência do modelo econômico e político concentrador e mistificador. Essa pseudo-renovação, em que os centros de poder passam a atacar e ajudam a desmoralizar seus próprios agentes já desgastados, com o que ganham até a simpatia da massa miserabilizada e até de setores da esquerda nesses países e em outros, leva a um alívio, que é apenas temporário, até que de novo se agucem as contradições entre o modelo econômico e as necessidades de desenvolvimento, impulsionadas, em última análise, pelo crescimento demográfico e pela demanda crescente por emprego, em um sistema tecnológico cada vez mais capital-intensivo.

No caso da Amazônia, as políticas econômicas neoliberais adotadas em nível nacional mas que se espraiariam à região, tiveram efeitos mais graves pois a natureza dos desafios exigia uma presença firme e planejadora do Estado central. A própria organização primitiva da produção industrial de transformação e das empresas locais fizeram com que a região passasse a depender cada vez mais da produção que o consumismo de alto nível de renda dos grandes países desenvolvidos exigiam, isto é, a produção e o trânsito de drogas, a extração e o contrabando de pedras preciosas e o parque de lazer exótico para as classes médias desses países, na melhor das hipóteses disfarçado sob o rótulo de eco-turismo, sujeita à predação dos recursos naturais, inclusive à biopirataria, e humanos, através da prostituição infantil organizada que nas cidades maiores chega a atingir mais de trinta por cento da população pobre.

Os países vizinhos na Amazônia

A ilusão do crescimento econômico e da estabilidade política e social terminou na América do Sul e agora se colhe o fruto amargo da desistência irrefletida do projeto de desenvolvimento nacional autônomo (não-autárquico) trocado que foi, com grande fanfarra, por uma estratégia de inserção competitiva, que se revelou ser apenas subordinada, na globalização e por uma pseudo-modernidade, em especial do consumo. Apesar das críticas à globalização assimétrica e às suas agências, como a OMC e o FMI, que surgem mesmo entre líderes que tanto as louvaram e que continuam aliás, às vezes, a executar as mesmas políticas anteriores as quais levaram às dificuldades e angústias atuais, a última cartada para consolidar as políticas neoliberais se joga na abertura de negociação de acordos de livre-comércio com os Estados Unidos. Na Colômbia, cuja população é 26% da brasileira, cerca de trinta por cento de seu território chegou a se encontrar sob controle legal, e aceito pelo Estado central, das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação Nacional), que nele executaram funções típicas do Estado. Essas organizações de guerrilha, que se iniciam após 1948, quando ocorreu o famoso Bogotazo, a entrega de armas por insurgentes e em seguida sua matança, chegaram a ter amplo apoio nas áreas rurais, devido à concentração da propriedade e ao arbítrio violento do trato dos camponeses.

A execução do Plano Colômbia entre os Estados Unidos e a Colômbia prevê a aquisição de equipamento militar americano sofisticado, como helicópteros de combate, para ser usado na erradicação das plantações de coca, mas que poderá ser utilizado contra os guerrilheiros das Farc e do ELN, acusados de serem estreitos aliados do narcotráfico, de quem cobrariam impostos. Os Estados Unidos chegam a ter cerca de 1.000 assessores militares na Colômbia.

A participação da Colômbia na produção mundial de cocaína é estimada em trinta por cento, enquanto a Colômbia abastece dessa droga cerca de 90% do consumo americano. Por outro lado, o crescimento econômico na Colômbia tem sido nos últimos anos muito baixo, inclusive inferior à taxa de crescimento demográfico, o que acentua o desemprego, que atinge parcela importante da população e aumenta a emigração, em especial para a Venezuela. O Estado se mostra impotente diante da ação dos grupos paramilitares, as chamadas AUC (e até é acusado de os estimular veladamente), responsáveis pelas matanças sistemáticas de líderes sindicais, camponeses e intelectuais, enquanto aumentam os movimentos de refugiados para a Venezuela e o Equador e, portanto, as tensões com esses países, ocorrendo com a Venezuela disputas históricas em relação a áreas ricas em petróleo e de fronteira.

Na Colômbia, ocorreram trinta mil assassinatos, por ano, em média nos últimos dez anos, sendo considerada o país mais violento do mundo. No Equador, país com população equivalente a 8% da brasileira, cerca de 60% indígenas, dos quais vinte por cento não falam espanhol, a economia está em retrocesso, sendo o crescimento do PIB inferior a um por cento ao ano nos últimos anos. Mais de setenta por cento da população é desempregada ou subempregada, e mais de 60% de equatorianos se encontram abaixo da linha de pobreza. As políticas neoliberais reforçaram a extraordinária concentração histórica de renda e a profunda vulnerabilidade externa da economia equatoriana, dependente quase que exclusivamente das exportações de petróleo e de pescado. A última iniciativa dos defensores da estabilidade monetária a qualquer custo (e dos lucros que viriam a obter no momento da conversão) foi feita com a dolarização súbita da economia em 2000, o que a colocou à mercê de flutuações dos preços internacionais do petróleo sobre os quais não tem nenhum controle. O profundo e histórico ressentimento da enorme maioria indígena da população contra a minoria branca se traduz hoje em crescente mobilização política, cada vez mais consciente e capaz de colocar em cheque o sistema político oligárquico tradicional, enquanto o Estado faz acordos com os Estados Unidos para a utilização militar da base aérea de Manta para apoiar o Plano Colômbia, o que envolve o Equador na explosiva situação colombiana.

No Peru, cuja população equivale a 16% da brasileira, a política econômica agravou a histórica concentração de renda e elevou o desemprego e a urbanização descontrolada, provocada pela atividade da guerrilha do Sendero Luminoso e pelos ferozes métodos de combate a ela aplicados nas zonas rurais. O quadro de inquietação social e política não é conjuntural, mas sim estrutural, e se agravou na medida em que o sucessor de Fujimori, Alejandro Toledo, de origem indígena, continuou a aplicar as mesmas políticas na esfera econômica, as quais apesar dos aparentes índices elevados de crescimento, ao não se refletirem em desenvolvimento e emprego, levam a índices de popularidade inferiores a dois dígitos. O surgimento da manifestação de justiça sumária popular (indígena) contra políticos (brancos) acusados de corrupção constitui fenômeno recente de profundas possibilidades.


“Hugo Chávez, que já venceu oito escrutínios acompanhados por observadores internacionais, sofre os efeitos de uma operação internacional da mídia e da academia que procura caracterizá-lo como louco e ditatorial”


Na Venezuela, o governo radicalmente democrático de Hugo Chávez, que já venceu oito escrutínios acompanhados por observadores internacionais, sofre os efeitos de uma operação internacional da mídia e da academia que procura caracterizá-lo como louco e ditatorial. A julgar pela experiência histórica latino-americana, não haverá hesitação internacional em apoiar, inclusive com amplos recursos financeiros, como ocorreu no caso da derrubada de Allende, no Chile, ação agora revelada oficialmente pelos Estados Unidos, a oposição a seu governo, em especial através de articulação dos interesses de setores das elites que foram removidas, pelo voto, das posições tradicionais de controle político da sociedade e do Estado, que concentra e distribui a renda do petróleo. Por outro lado, as históricas disputas entre a Venezuela e a Colômbia poderão, a partir de eventuais violações de fronteiras, devido à aplicação do Plano Colômbia, à perseguição e à eventual (não comprovada) instalação de núcleos de guerrilha colombiana na Venezuela e à aceleração da emigração, vir a se agravar, dando munição política a movimentos de oposição ao Governo Chávez, com risco de eventual surgimento de guerrilhas cuja ação e reação a elas poderiam afetar a segurança e violar as fronteiras brasileiras. O envolvimento da OEA e do Centro Carter no processo do referendum na Venezuela foi indicador de uma tendência de internacionalização do próprio processo político interno dos países da região, a qual passa a ser considerada gradualmente como natural. A participação de Potências e países extra-continentais nos esforços de mediação de conflitos políticos (não-militares) internos traz para a América do Sul práticas do passado. Assim, enquanto a mídia procura isolar politicamente a Venezuela, ao mesmo tempo há uma participação internacional intensa em sua política interna. A economia e o Estado venezuelanos dependem essencialmente das receitas com o petróleo e o desemprego e subemprego estrutural atingem parcela muito ampla da população, a qual corresponde no total a cerca de 15% da brasileira.

Na Bolívia, as situações históricas de enorme desigualdade, agravadas pelas políticas econômicas neoliberais, das quais o Governo boliviano de Paz Estensoro foi precursor na América do Sul, o conseqüente desemprego, e os programas quase militares de erradicação à força de plantações de coca, e sua substituição por culturas muito menos lucrativas com o auxílio financeiro e de assessores dos Estados Unidos, têm provocado insatisfação popular de tal ordem que levaram à mobilização ativa das populações indígenas que reivindicam e tem alcançado participação e representação maior e efetiva no Legislativo. A população indígena se concentra no Altiplano, de difícil exploração econômica, e é composta por distintos grupos, com idiomas diversos, em oposição tradicional à região de Santa Cruz de La Sierra, que tem veleidades autonomistas. O ressurgimento das tensões com o Chile em torno do acesso soberano ao Pacífico, questão inarredável da política interna boliviana, e a nova dependência do gás, de sua exploração, exportação ou transformação local, e de suas conexões com o Brasil, torna o contexto externo da Bolívia tenso. A população total da Bolívia corresponde a cerca de 5% da população brasileira.

As sociedades amazônicas menores em população, território e produção, que são o Suriname (aproximadamente 450 mil habitantes) e a Guiana (cerca de 800 mil habitantes), apresentam quadros de subdesenvolvimento econômico crônico e de fragilidade latente política igualmente preocupantes e se encontram sujeitas à contínua influência externa, em especial o Suriname, onde há conflitos históricos de fronteira. A Guiana Francesa é um caso à parte, pois se encontra sob domínio colonial da França, que a considera parte integral do território francês, como se a Guiana se encontrasse na Europa continental.

A questão militar na Amazônia

Um componente relativamente novo na questão da segurança da região amazônica brasileira é a crescente presença de assessores militares americanos e a venda de equipamentos sofisticados às Forças Armadas colombianas pretensamente para apoiar os programas de erradicação das drogas, mas que podem ser, fácil e eventualmente, utilizados no combate às Farc e ao ELN. A presença militar americana, que já se estende ao Equador, ao Peru e aparentemente à Bolívia, através de utilização de bases militares, poderá se expandir a outros países, em um processo semelhante ao que ocorreu na Guerra do Vietnã, e levar a pressões crescentes para procurar obter a colaboração do Brasil e de outros países sul-americanos para transformar a luta contra a droga (e contra as Farc e o ELN) em uma empreitada militar sul-americana, e não apenas colombiano-americana.

O Plano Colômbia faz parte da estratégia americana para assegurar presença militar direta na região andino-amazônica e inclui aspectos tais como a reforma das instituições políticas colombianas, em especial de seu Judiciário, e da legislação para permitir a extradição para os Estados Unidos não somente de narcotraficantes, cidadãos colombianos, mas também de guerrilheiros e o deslocamento maciço de camponeses, sem realização de reforma agrária.

“O Plano Colômbia é parte da primeira das três vertentes da estratégia militar americana para a América do Sul, cujos outros dois vetores são a adoção pelos Governos e Forças Armadas da região de teses e esquemas de segurança cooperativa e, em segundo lugar, o desarmamento inclusive convencional, dos países da região”

O Plano Colômbia é parte da primeira das três vertentes da estratégia militar americana para a América do Sul, cujos outros dois vetores são a adoção pelos Governos e Forças Armadas da região de teses e esquemas de segurança cooperativa e, em segundo lugar, o desarmamento, inclusive convencional, dos países da região. A primeira vertente, de que faz parte o Plano Colômbia, dessa estratégia tem como objetivo estacionar permanentemente tropas e equipamentos americanos na América do Sul para facilitar eventuais intervenções. Esta vertente vem se desenvolvendo pelo menos desde 1994, quando se realizaram as operações militares americanas denominadas Green Clover e Laser Strike, na região amazônica de países vizinhos próximas ao Brasil.

A situação gerada pelo Plano Colômbia, iniciativa americana que ultrapassa em muito seu objetivo declarado, qual seja o mero combate à produção de drogas, teve, todavia, o mérito de ressuscitar o debate sobre a Amazônia e sobre as estratégias de desenvolvimento econômico e político brasileiro para a região e para o país em geral.

A elevada e crescente instabilidade social, política e econômica em países fronteiriços à Amazônia brasileira permite assim vislumbrar algumas situações hipotéticas, porém plausíveis no futuro próximo: a operação (esporádica ou permanente) em território brasileiro de guerrilhas estrangeiras; o ingresso ocasional de tropas estrangeiras, americanas ou de países vizinhos, em território brasileiro em perseguição a guerrilheiros; agressões eventuais a brasileiros nessas circunstâncias e movimentos significativos de refugiados provenientes de países limítrofes.

As fronteiras terrestres brasileiras são de 15.600 quilômetros, sendo que na Amazônia se encontram 13.200 km. Com a Bolívia tem o Brasil três mil quilômetros de fronteira; com o Peru, três mil; com a Colômbia, 1.600 km; com a Venezuela, 2.200; com a Guiana, 1.600; com a Guiana Francesa setecentos e com o Suriname seiscentos. A título de comparação internacional, a fronteira entre a França e a Espanha se alonga por apenas seiscentos quilômetros e a fronteira entre França e Alemanha tem 450 km. As atividades necessárias à vigilância e à defesa desses treze mil quilômetros de fronteiras brasileiras em regiões amazônicas longínquas, de difícil acesso e muitas vezes inóspitas, exigiriam recursos vultosos para serem minimamente eficientes.

Se a sociedade e as lideranças políticas das regiões mais desenvolvidas do Brasil continuarem a se revelar míopes ou econômicas diante da urgência dessa questão se surpreenderão a médio prazo com as conseqüências de sua omissão pois essas afetarão toda sociedade brasileira, sem que disso escapem mesmo aquelas regiões distantes da Amazônia que poderiam parecer a salvo dessas conseqüências.

Qualquer brasileiro preocupado com a escalada da violência e do crime, sofisticado e pesadamente armado, nas cidades grandes e agora médias, e com o consumo de drogas em aberta e acelerada expansão no Brasil deve concordar com a necessidade de eficiente vigilância das fronteiras, inclusive terrestres. Qualquer indivíduo realista reconhece que esta vigilância não pode ser feita por organizações privadas mas sim pelo Estado e que, dentro do Estado, a defesa e o controle das fronteiras deve caber às Forças Armadas, coadjuvadas pela Polícia. Por violentos e arbitrários, corruptos e ineficientes que possam ter sido no passado setores dessas organizações do Estado, e justo o ressentimento social por fatos lastimáveis e dolorosos cujos responsáveis individuais devem ser punidos, o que se deve levar em conta no presente é a necessidade da função que a sociedade necessita exercer e que, para ser exercida, deve sê-lo através dessas organizações do Estado, de forma eficiente, honesta e democrática.

“O Projeto Calha Norte, assim como o Projeto Sivam, são importantes iniciativas no sentido de controle e defesa das fronteiras”

Assim, o Projeto Calha Norte, assim como o Projeto Sivam, são importantes iniciativas no sentido de controle e defesa das fronteiras. O Projeto Calha Norte, iniciado em 1985, tem como objetivo instalar unidades militares de apoio às populações civis ao longo da faixa de fronteiras e assim prevenir e desestimular eventuais ingressos no território brasileiro de insurgentes e contribuir para o controle de atividades ilícitas, em especial o contrabando e o narcotráfico. O Projeto Calha Norte pode vir a se transformar de hipotética ameaça em poderoso instrumento de integração bilateral na medida em que se possa associar cada país vizinho em sua execução e assim torná-lo um elemento de aproximação política e de integração física e econômica das populações das fronteiras e dos próprios países em geral.

O Projeto Sivam - Sistema de Vigilância Aérea da Amazônia - corresponde a um conjunto de unidades rastreadoras de sinais de satélite, que permite a detecção de atividades ilegais, a localização de aeronaves clandestinas envolvidas com o tráfico de drogas, de atividades de desmatamento e queimadas, e no qual há grande interesse dos Estados vizinhos em participar.

A eventual ineficiência ou corrupção, real ou imaginada, que tais programas tenham revelado ou propiciado não significa que a sociedade brasileira, mesmo aqueles setores que se julgam distantes da Amazônia e assim indiferentes à soberania brasileira sobre essa região, possa prescindir deles. Como tornar essas organizações e programas do Estado eficientes e garantir o controle social sobre a formulação e execução de políticas de defesa de fronteiras é questão distinta e deve ser resolvida através de mecanismos de controle permanente do Congresso, com o auxílio da sociedade civil.

A questão da Amazônia e a situação de instabilidade ao longo das fronteiras torna assim cada vez mais importante enfrentar uma questão essencial para a evolução a médio e a longo prazo da sociedade brasileira, qual seja a da reconciliação efetiva entre certos segmentos da sociedade civil e as Forças Armadas brasileiras. A divisão que ocorreu no passado, devido aos excessos e a ilegalidades cometidas, em especial à época da repressão mais violenta do Estado à guerrilha, não pode prosseguir indefinidamente. É necessário que a sociedade brasileira faça esforços constantes para fortalecer e fomentar uma crescente coesão entre suas organizações civis e militares, sem se deixar iludir pela utopia da construção de uma sociedade sem Forças Armadas. O que deve ser ressaltado nesses esforços é a necessidade de construir Forças Armadas democráticas, eficientes, voltadas para a defesa dos interesses brasileiros, diante da ação de Potências extra-regionais, cujo interesse, aliás, é desarmar a sociedade brasileira e torná-la mais vulnerável à sua influência e a seus objetivos nacionais.

Assim, a proteção militar eficiente para garantir a inviolabilidade das fronteiras e a segurança das populações brasileiras que nessas regiões habitam, assim como a enérgica recusa brasileira a que se utilizem na Colômbia métodos de combate à droga e de erradicação de plantações que possam vir a afetar o ecossistema da Amazônia brasileira, devem ser prioridades do Governo e da sociedade brasileiros.

A questão do narcotráfico, quanto à produção e ao comércio, está vinculada aos sistemas predatórios e voluntaristas de exploração econômica para exportação, implantados na Amazônia. Esses sistemas atraíram populações de outras regiões do país e financiaram projetos de colonização orientados inicialmente para a criação de gado e mais recentemente para o cultivo de arroz e de soja, que levaram e levam ao desflorestamento. O rápido esgotamento do solo e a geração de desemprego pela monocultura e pela pecuária extensiva e a descoberta de jazidas de ouro lançaram as populações desempregadas na garimpagem e no tráfico de drogas e de agentes químicos, que se articulam por sua vez com a rede internacional de contrabando de ouro, pedras preciosas e armas, que, por definição, desconhece fronteiras.

De outro lado, a questão geral do narcotráfico está profundamente vinculada às normas de funcionamento do sistema financeiro nacional e internacional as quais permitem, na prática, a lavagem de dinheiro e sua transferência legal para os grandes centros financeiros e para os megabancos. A resistência à quebra de sigilo bancário por parte dos grandes bancos, em especial nos paraísos fiscais, e a relutância dos Governos dos países desenvolvidos em controlar seu sistema financeiro, fazem com que haja um esforço permanente em colocar o ônus político da imagem de fonte de corrupção e crime e o custo financeiro do combate à droga nos Estados da periferia.

No caso do Brasil, o controle indispensável de fronteiras será de pouca eficiência se não for acompanhado, de um lado, pela obrigatoriedade dos bancos privados de declararem ao Banco Central os depósitos em espécie acima de certos valores e de exercerem controle efetivo sobre a abertura de contas laranja e, por outro lado, de maior fiscalização pelo Banco Central sobre a movimentação financeira para o exterior das agências bancárias privadas, em especial nas áreas de fronteira. Ainda que tais medidas possam contribuir para o combate ao tráfico de drogas, à evasão de divisas e à lavagem de dinheiro, somente programas voltados para a redução sistemática do desemprego, para a organização de atividades sociais para jovens nas periferias, para a redução da propaganda da violência nos meios de comunicação, e finalmente a descriminação do consumo de drogas poderão de fato atingir as causas profundas da demanda por narcóticos, que vão muito além da indução dos traficantes.

Essas causas não podem ser eliminadas pelos programas de erradicação e substituição da produção, que se revelarão sempre frustrantes e ilusórios, levando apenas ao deslocamento geográfico de áreas de produção e à expansão da produção de drogas sintéticas, responsáveis por parcela superior a 50% do consumo global de narcóticos, antidepressivos e estimulantes no mundo, fabricados nos países altamente desenvolvidos.

A questão do narcotráfico é politicamente importante devido à infiltração de seus integrantes e representantes no sistema político, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário, municipais, estaduais e federais. É necessário analisar a evolução dos mecanismos dessa infiltração na Colômbia e em outros países, inclusive países consumidores desenvolvidos, para melhor combatê-la no Brasil. Forma possível de combate a essa infiltração política nos organismos do Estado seria a adoção de legislação exigindo a suspensão automática de sigilo bancário de todos os ocupantes e candidatos a cargos no Executivo, Legislativo e Judiciário. A questão da infiltração política vem se agravando na medida em que o Brasil passa de uma situação de país de trânsito para uma situação de consumo crescente e difuso de drogas.

* Esta é a primeira parte de um artigo recém-produzido pelo autor. A segunda parte será divulgada em breve também na Carta Maior (www.cartamaior.com.br)

(*) Samuel Pinheiro Guimarães é secretário-geral das Relações Exteriores do Brasil.

fonte: Boletim Aepet - 3/6/2005 - transcrito também no saite www.pdt-rj.org.br


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