O Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, atualmente Secretário Geral do
Ministério das Relações Exteriores, faz uma análise nesse extenso artigo
publicado na "Carta Maior" que é imperdível. Além de atualíssima, é uma
das análises mais lúcidas sobre a questão da América do Sul e da
Amazônia - diante da cobiça dos EUA. Não deixem de ler e passar adiante.
Osvaldo Maneschy
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Amazônia, paraíso perdido
* Samuel Pinheiro Guimarães
O habitante do Sudeste tende a considerar a população e o território
brasileiros ou como um tesouro, fácil de explorar, que só a corrupção e
a ineficiência impedem, ou mais freqüentemente como uma espécie de ônus,
pois o Brasil é muito grande, tem muita gente. Em geral, não tem
consciência das vantagens de um território continental nem de uma grande
população. A Amazônia corresponde a sessenta por cento do território
terrestre brasileiro, cerca de cinco milhões de quilômetros quadrados,
enquanto é habitada por apenas cerca de onze por cento da população
brasileira, que se concentram em dois centros urbanos, Belém e Manaus.
Na Amazônia se encontram a mais extensa floresta tropical do mundo, que
encerra a maior biodiversidade do planeta, o maior estoque de água doce,
e recursos minerais extraordinários ainda que em sua enorme maioria
desconhecidos com precisão, pois apenas dez por cento do território
amazônico foi mapeado geologicamente. Na Amazônia se encontram 13.190
quilômetros de fronteira terrestre do Brasil, oitenta e cinco por cento
do total das fronteiras brasileiras, que são nossos limites com seis
países sul-americanos e com a França.
De seu lado, o Nordeste corresponde à mais antiga região habitada do
território brasileiro onde vivem e sobrevivem, em condições de pobreza
crônica, no semi-árido e em periferias urbanas miseráveis, cerca de
vinte e dois por cento do povo brasileiro, em um território de dois
milhões de quilômetros quadrados, cerca de 25% do território nacional,
com um regime climático em grande parte semi-árido e com grande
irregularidade pluvial, mas para cujos desafios há soluções menos
complexas, inclusive pela ausência de interface com outros países.
Assim, apesar de todas as dificuldades da organização geoeconômica do
Nordeste, enfrentar o desafio amazônico talvez seja o mais complexo e
mais urgente desafio para o Estado brasileiro e o desafio mais decisivo
para o futuro da sociedade brasileira. Deveria, por isto, receber a
atenção prioritária que não tem recebido.
O ambiente internacional para a Amazônia
Hoje em dia, muito mais do que ocorria até o passado recente, o ambiente
internacional para o Brasil, e para a Amazônia em particular, tem
influência decisiva sobre o futuro, do país e da região. Primeiro, a
situação política, social, econômica e militar nos seis países com que a
Amazônia faz fronteira; segundo, a pressão internacional para controlar
a Amazônia, que se exerce hoje através de agências internacionais, de
ONGs e da estratégia diversionista de Estados estrangeiros, com padrões
de consumo e produção insustentáveis e detentores de grandes recursos
financeiros e tecnológicos; terceiro, o tráfico internacional de drogas
e seus efeitos sobre o sistema financeiro e político; quarto, a presença
militar e a ação americana nos países vizinhos; quinto, as políticas
econômicas contracionistas e de viés antidesenvolvimentista dos governos
federais que dificultam a realização de programas de desenvolvimento das
regiões atrasadas; e sexto, a omissão por vezes interessada do Estado
diante da ação de grandes empresas nacionais e estrangeiras, principais
responsáveis pelo desmatamento amazônico.
De todos esses fatores, talvez o principal seja a presença militar
americana na região, a militarização do combate à droga e a possível
internacionalização de conflitos internos existentes ou latentes de
Estados vizinhos em direção ao Brasil. A situação nos países vizinhos é,
a todos os respeitos, crítica. Após anos de neoliberalismo econômico e
de democracia formal, e da colheita do fruto ilusório da estabilidade da
moeda, os indicadores econômicos e sociais revelam a persistência de
situações estruturais que se encontram na raiz de conflitos que irrompem
cada vez com maior freqüência por toda a parte. Nas fronteiras mais ao
sul do Brasil, a situação poderia vir a ser semelhante, ainda que não
tão grave, o que pareceria, à primeira vista, não afetar a Amazônia.
Todavia, devido aos vínculos entre as economias brasileira e dos países
vizinhos ao sul, as dificuldades para superar crises econômicas ou a
instabilidade social teriam profundas consequências para a economia e a
política econômica brasileira em geral, o que, por sua vez, reduziria
ainda mais a capacidade do Estado brasileiro de atuar na Amazônia e de
assim iniciar o enfrentamento sistemático de seus desafios.
“As políticas econômicas nos países da América do Sul foram em extremo
semelhantes por terem tido sua inspiração comum nos princípios do
Consenso de Washington”
As políticas econômicas nos países da América do Sul foram em extremo
semelhantes por terem tido sua inspiração comum nos princípios do
Consenso de Washington articulado entre academia, megaempresas
multinacionais, organismos internacionais e do Governo americano como
solução para a América Latina. Deveriam promover a abertura e
desregulamentação da economia através de redução de tarifas e a
liberalização cambial; a redução da capacidade de ação do Estado; a
privatização radical; o ajuste fiscal rigoroso e implacável; políticas
de âncora cambial; a flexibilização dos mercados de trabalho; a
eliminação de reservas de mercado para o capital local e o tratamento
privilegiado ao capital estrangeiro. Em resumo: o Consenso advogava o
livre jogo das forças de mercado em todos os mercados, com viés
favorável ao estrangeiro e às empresas megamultinacionais, sem nenhuma
distinção para regiões complexas.
No campo político, todos os Estados da região foram induzidos a promover
reformas para aumentar o poder político do Executivo Federal, inclusive
adotando a possibilidade de eleição presidencial por dois (porém somente
dois) mandatos consecutivos; para reduzir a influência política do
Congresso (e do povo) que teria supostamente natureza corporativa,
atribuindo poderes legislativos ao Executivo e criando agências
tecnocráticas, as chamadas agências reguladoras de natureza econômica;
para reformar o Judiciário para discipliná-lo e enquadrá-lo no apoio às
novas políticas; para reduzir o efetivo e a influência das Forças
Armadas, cuja tendência nacionalista poderia prejudicar a execução da
nova estratégia econômica neoliberal.
As políticas executadas pelos Governos neoliberais na América do Sul e
na região amazônica não atingiam o cerne da questão econômica, que é a
construção e o desenvolvimento do mercado interno e o fortalecimento da
coesão social. Fundaram suas esperanças em uma inserção retrógrada no
mercado internacional, tentando uma volta aos anos dourados da
exportação de produtos primários e da fictícia estabilidade do
padrão-ouro, através de novos avatares, como foi o currency board (caixa
de conversão) argentino. A abertura radical de suas economias ao capital
multinacional e as privatizações aceleradas causaram o enfraquecimento
empresarial local e a desestruturação dos já frágeis Estados nacionais,
gerando, de outro lado, temporariamente, grandes ingressos de capital
estrangeiro, o que os iludiu.
As megaempresas multinacionais adquiriram e modernizaram unidades
produtivas, mas em muitos casos os investimentos se concentraram no
setor de serviços e de non-tradeables. Todavia, nesse processo pouco
expandiram a capacidade instalada, gerando maior desemprego industrial
sem reduzir o desemprego estrutural, não ampliaram as exportações,
aumentaram as importações desses países e aprofundaram sua dependência
tecnológica.
De forma artificial e na aparência, os Governos dos países da região
alcançaram êxito em controlar a inflação através de rigorosos ajustes
fiscais, do ingresso de capital estrangeiro e da liberalização de
importações. Suas políticas geraram um ingresso rapinante de capitais
especulativos de curto prazo, atraídos por elevadas taxas de juros e por
sistemas cambiais desregulamentados, na realidade descontrolados, com
mecanismos do tipo da conta CC-5, e de investimentos diretos
oportunistas, atraídos por uma miríade de isenções, créditos e
oportunidades, que absorveram as empresas locais e contribuíram para uma
fictícia estabilidade cambial e de preços. Os responsáveis pelas
políticas econômicas, as chamadas equipes econômicas, aparentemente
consideraram as entradas de capital estrangeiro como doações ou como
magicamente indutoras da capacidade de gerar divisas que viessem a
compensar as futuras e inevitáveis saídas de capital.
Assim, se garantiu a felicidade inicial das diminutas e deslumbradas
classes médias em cada país, que conquistaram a liberdade e o direito de
importar e consumir produtos sofisticados, classes essas que, aliás,
haviam apoiado anteriores tentativas de implantar modelos econômicos
liberais, até mesmo quando acompanhados de regimes políticos autoritários.
As classes pobres foram atendidas pelo neo-assistencialismo da
distribuição de alimentos e por outros esquemas semelhantes de
solidariedade, anestesiadas pela liberdade irrestrita conferida à
televisão hipnótica e alienante que invadiu o vazio cultural, iludidas
por estratégias paliativas de luta pelos direitos humanos que, em
realidade, não enfrentam as causas reais das violações nem da
criminalidade de que são os pobres as principais vítimas.
As classes privilegiadas e poderosas se viram, no primeiro momento,
aliviadas pelo hábil afastar, ainda que efêmero, das reivindicações de
redistribuição de renda e riqueza, substituídas pelo culto à
estabilidade da moeda, pela difusão da crença em sua capacidade de
resolver todas as questões do subdesenvolvimento e pelos apelos a uma
luta (superficial) contra a pobreza. Muitos venderam suas empresas ao
capital estrangeiro avassalador e passaram (ou continuaram) a se inserir
familiarmente no Primeiro Mundo, através do uso de seus sistemas de
educação (famosas escolas e universidades para os filhos), de lazer
(museus, restaurantes, concertos, tv a cabo, Disney World), de saúde
(hospitais e clínicas da mais avançada tecnologia), em uma situação que
muito se assemelha ao que faziam no passado os proprietários
absenteístas das fazendas de açúcar, de café e de cacau que as
entregavam a administradores e viviam faustosamente no litoral e na
Europa. Com o câmbio fixo ou quase fixo, seus proventos de rentistas do
Estado ficaram estáveis em moeda forte e, tendo transferido parte de seu
capital para o exterior, a situação política e social os preocupa cada
vez menos e até mesmo a perspectiva de crise final dessas políticas -
econômica, social e política estrito senso - insustentáveis não é temida.
O sistema econômico vai à falência periodicamente (as crises), pois de
um lado se baseia na acumulação de compromissos financeiros a taxas de
juros elevadas, de exploração oligopolística do mercado a lucros
astronômicos, na venda precipitada e corrupta de um estoque finito de
ativos, na contração do mercado interno e, de outro lado, não foi capaz
durante longo tempo de gerar em volumes crescentes não só produção
exportável nova mas superávites não contracionistas. A escassez latente
de divisas para enfrentar os compromissos, ao quase materializar a
crise, provoca operações apressadas de sustentação prévia que se fazem à
custa de novos e novos pacotes de assistência financeira, organizados
pelo FMI, sempre em troca de maiores compromissos de liberalização e de
restrições à autonomia nacional de gestão econômica.
Assim, a situação em todos os países vizinhos da região amazônica e com
o Brasil fronteiriços apresenta características muito semelhantes: longa
estagnação ou lento crescimento econômico, compromissos externos
elevados, alta vulnerabilidade a flutuações externas, desarticulação do
Estado, pressão externa renovada para que adotem políticas ainda mais
neoliberais e contracionistas, desemprego elevado, crime organizado e
violência urbana, inchaço incontrolável das cidades, incapacidade do
Estado de atender às demandas sociais, inquietação política acentuada.
A insatisfação com os regimes democráticos é crescente e inquietante,
pois são eles cada vez mais vistos pela população como formais e
pseudo-populares por serem antinacionais (globalizantes), elitistas e
autoritários (soft) em sua essência. As massas dos países da região, em
que a percentagem abaixo da linha de pobreza crônica (não ocasional) há
gerações é sempre elevada e onde a pobreza tende a ser maior em suas
regiões amazônicas, têm grau de politização extremamente baixo e como
principal objetivo a sobrevivência quotidiana. Sua participação política
na democracia é reduzida e cíclica. A ela se agregaram faixas crescentes
da classe média empobrecida, onde o individualismo e as expectativas de
progresso material haviam sido estimuladas pela mídia. Sua frustração,
inclusive com seu empobrecimento relativo, seu receio diante da pobreza
e violência crescente nos centros urbanos fazem com que passem a apelar
cada vez mais por ordem e emprego, saudosas do passado.
“Os centros do poder mundial articulados às estruturas de poder local
estimulam a renovação de lideranças políticas desgastadas tais como
viriam a ser Salinas de Gortari, Menem e Fujimori, inclusive para
garantir a sobrevivência do modelo econômico”
Periodicamente, os centros do poder mundial articulados às estruturas de
poder local estimulam a renovação de lideranças políticas desgastadas
tais como viriam a ser Salinas de Gortari, Menem e Fujimori, inclusive
para garantir a sobrevivência do modelo econômico e político
concentrador e mistificador. Essa pseudo-renovação, em que os centros de
poder passam a atacar e ajudam a desmoralizar seus próprios agentes já
desgastados, com o que ganham até a simpatia da massa miserabilizada e
até de setores da esquerda nesses países e em outros, leva a um alívio,
que é apenas temporário, até que de novo se agucem as contradições entre
o modelo econômico e as necessidades de desenvolvimento, impulsionadas,
em última análise, pelo crescimento demográfico e pela demanda crescente
por emprego, em um sistema tecnológico cada vez mais capital-intensivo.
No caso da Amazônia, as políticas econômicas neoliberais adotadas em
nível nacional mas que se espraiariam à região, tiveram efeitos mais
graves pois a natureza dos desafios exigia uma presença firme e
planejadora do Estado central. A própria organização primitiva da
produção industrial de transformação e das empresas locais fizeram com
que a região passasse a depender cada vez mais da produção que o
consumismo de alto nível de renda dos grandes países desenvolvidos
exigiam, isto é, a produção e o trânsito de drogas, a extração e o
contrabando de pedras preciosas e o parque de lazer exótico para as
classes médias desses países, na melhor das hipóteses disfarçado sob o
rótulo de eco-turismo, sujeita à predação dos recursos naturais,
inclusive à biopirataria, e humanos, através da prostituição infantil
organizada que nas cidades maiores chega a atingir mais de trinta por
cento da população pobre.
Os países vizinhos na Amazônia
A ilusão do crescimento econômico e da estabilidade política e social
terminou na América do Sul e agora se colhe o fruto amargo da
desistência irrefletida do projeto de desenvolvimento nacional autônomo
(não-autárquico) trocado que foi, com grande fanfarra, por uma
estratégia de inserção competitiva, que se revelou ser apenas
subordinada, na globalização e por uma pseudo-modernidade, em especial
do consumo. Apesar das críticas à globalização assimétrica e às suas
agências, como a OMC e o FMI, que surgem mesmo entre líderes que tanto
as louvaram e que continuam aliás, às vezes, a executar as mesmas
políticas anteriores as quais levaram às dificuldades e angústias
atuais, a última cartada para consolidar as políticas neoliberais se
joga na abertura de negociação de acordos de livre-comércio com os
Estados Unidos. Na Colômbia, cuja população é 26% da brasileira, cerca
de trinta por cento de seu território chegou a se encontrar sob controle
legal, e aceito pelo Estado central, das Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação Nacional),
que nele executaram funções típicas do Estado. Essas organizações de
guerrilha, que se iniciam após 1948, quando ocorreu o famoso Bogotazo, a
entrega de armas por insurgentes e em seguida sua matança, chegaram a
ter amplo apoio nas áreas rurais, devido à concentração da propriedade e
ao arbítrio violento do trato dos camponeses.
A execução do Plano Colômbia entre os Estados Unidos e a Colômbia prevê
a aquisição de equipamento militar americano sofisticado, como
helicópteros de combate, para ser usado na erradicação das plantações de
coca, mas que poderá ser utilizado contra os guerrilheiros das Farc e do
ELN, acusados de serem estreitos aliados do narcotráfico, de quem
cobrariam impostos. Os Estados Unidos chegam a ter cerca de 1.000
assessores militares na Colômbia.
A participação da Colômbia na produção mundial de cocaína é estimada em
trinta por cento, enquanto a Colômbia abastece dessa droga cerca de 90%
do consumo americano. Por outro lado, o crescimento econômico na
Colômbia tem sido nos últimos anos muito baixo, inclusive inferior à
taxa de crescimento demográfico, o que acentua o desemprego, que atinge
parcela importante da população e aumenta a emigração, em especial para
a Venezuela. O Estado se mostra impotente diante da ação dos grupos
paramilitares, as chamadas AUC (e até é acusado de os estimular
veladamente), responsáveis pelas matanças sistemáticas de líderes
sindicais, camponeses e intelectuais, enquanto aumentam os movimentos de
refugiados para a Venezuela e o Equador e, portanto, as tensões com
esses países, ocorrendo com a Venezuela disputas históricas em relação a
áreas ricas em petróleo e de fronteira.
Na Colômbia, ocorreram trinta mil assassinatos, por ano, em média nos
últimos dez anos, sendo considerada o país mais violento do mundo. No
Equador, país com população equivalente a 8% da brasileira, cerca de 60%
indígenas, dos quais vinte por cento não falam espanhol, a economia está
em retrocesso, sendo o crescimento do PIB inferior a um por cento ao ano
nos últimos anos. Mais de setenta por cento da população é desempregada
ou subempregada, e mais de 60% de equatorianos se encontram abaixo da
linha de pobreza. As políticas neoliberais reforçaram a extraordinária
concentração histórica de renda e a profunda vulnerabilidade externa da
economia equatoriana, dependente quase que exclusivamente das
exportações de petróleo e de pescado. A última iniciativa dos defensores
da estabilidade monetária a qualquer custo (e dos lucros que viriam a
obter no momento da conversão) foi feita com a dolarização súbita da
economia em 2000, o que a colocou à mercê de flutuações dos preços
internacionais do petróleo sobre os quais não tem nenhum controle. O
profundo e histórico ressentimento da enorme maioria indígena da
população contra a minoria branca se traduz hoje em crescente
mobilização política, cada vez mais consciente e capaz de colocar em
cheque o sistema político oligárquico tradicional, enquanto o Estado faz
acordos com os Estados Unidos para a utilização militar da base aérea de
Manta para apoiar o Plano Colômbia, o que envolve o Equador na explosiva
situação colombiana.
No Peru, cuja população equivale a 16% da brasileira, a política
econômica agravou a histórica concentração de renda e elevou o
desemprego e a urbanização descontrolada, provocada pela atividade da
guerrilha do Sendero Luminoso e pelos ferozes métodos de combate a ela
aplicados nas zonas rurais. O quadro de inquietação social e política
não é conjuntural, mas sim estrutural, e se agravou na medida em que o
sucessor de Fujimori, Alejandro Toledo, de origem indígena, continuou a
aplicar as mesmas políticas na esfera econômica, as quais apesar dos
aparentes índices elevados de crescimento, ao não se refletirem em
desenvolvimento e emprego, levam a índices de popularidade inferiores a
dois dígitos. O surgimento da manifestação de justiça sumária popular
(indígena) contra políticos (brancos) acusados de corrupção constitui
fenômeno recente de profundas possibilidades.
“Hugo Chávez, que já venceu oito escrutínios acompanhados por
observadores internacionais, sofre os efeitos de uma operação
internacional da mídia e da academia que procura caracterizá-lo como
louco e ditatorial”
Na Venezuela, o governo radicalmente democrático de Hugo Chávez, que já
venceu oito escrutínios acompanhados por observadores internacionais,
sofre os efeitos de uma operação internacional da mídia e da academia
que procura caracterizá-lo como louco e ditatorial. A julgar pela
experiência histórica latino-americana, não haverá hesitação
internacional em apoiar, inclusive com amplos recursos financeiros, como
ocorreu no caso da derrubada de Allende, no Chile, ação agora revelada
oficialmente pelos Estados Unidos, a oposição a seu governo, em especial
através de articulação dos interesses de setores das elites que foram
removidas, pelo voto, das posições tradicionais de controle político da
sociedade e do Estado, que concentra e distribui a renda do petróleo.
Por outro lado, as históricas disputas entre a Venezuela e a Colômbia
poderão, a partir de eventuais violações de fronteiras, devido à
aplicação do Plano Colômbia, à perseguição e à eventual (não comprovada)
instalação de núcleos de guerrilha colombiana na Venezuela e à
aceleração da emigração, vir a se agravar, dando munição política a
movimentos de oposição ao Governo Chávez, com risco de eventual
surgimento de guerrilhas cuja ação e reação a elas poderiam afetar a
segurança e violar as fronteiras brasileiras. O envolvimento da OEA e do
Centro Carter no processo do referendum na Venezuela foi indicador de
uma tendência de internacionalização do próprio processo político
interno dos países da região, a qual passa a ser considerada
gradualmente como natural. A participação de Potências e países
extra-continentais nos esforços de mediação de conflitos políticos
(não-militares) internos traz para a América do Sul práticas do passado.
Assim, enquanto a mídia procura isolar politicamente a Venezuela, ao
mesmo tempo há uma participação internacional intensa em sua política
interna. A economia e o Estado venezuelanos dependem essencialmente das
receitas com o petróleo e o desemprego e subemprego estrutural atingem
parcela muito ampla da população, a qual corresponde no total a cerca de
15% da brasileira.
Na Bolívia, as situações históricas de enorme desigualdade, agravadas
pelas políticas econômicas neoliberais, das quais o Governo boliviano de
Paz Estensoro foi precursor na América do Sul, o conseqüente desemprego,
e os programas quase militares de erradicação à força de plantações de
coca, e sua substituição por culturas muito menos lucrativas com o
auxílio financeiro e de assessores dos Estados Unidos, têm provocado
insatisfação popular de tal ordem que levaram à mobilização ativa das
populações indígenas que reivindicam e tem alcançado participação e
representação maior e efetiva no Legislativo. A população indígena se
concentra no Altiplano, de difícil exploração econômica, e é composta
por distintos grupos, com idiomas diversos, em oposição tradicional à
região de Santa Cruz de La Sierra, que tem veleidades autonomistas. O
ressurgimento das tensões com o Chile em torno do acesso soberano ao
Pacífico, questão inarredável da política interna boliviana, e a nova
dependência do gás, de sua exploração, exportação ou transformação
local, e de suas conexões com o Brasil, torna o contexto externo da
Bolívia tenso. A população total da Bolívia corresponde a cerca de 5% da
população brasileira.
As sociedades amazônicas menores em população, território e produção,
que são o Suriname (aproximadamente 450 mil habitantes) e a Guiana
(cerca de 800 mil habitantes), apresentam quadros de subdesenvolvimento
econômico crônico e de fragilidade latente política igualmente
preocupantes e se encontram sujeitas à contínua influência externa, em
especial o Suriname, onde há conflitos históricos de fronteira. A Guiana
Francesa é um caso à parte, pois se encontra sob domínio colonial da
França, que a considera parte integral do território francês, como se a
Guiana se encontrasse na Europa continental.
A questão militar na Amazônia
Um componente relativamente novo na questão da segurança da região
amazônica brasileira é a crescente presença de assessores militares
americanos e a venda de equipamentos sofisticados às Forças Armadas
colombianas pretensamente para apoiar os programas de erradicação das
drogas, mas que podem ser, fácil e eventualmente, utilizados no combate
às Farc e ao ELN. A presença militar americana, que já se estende ao
Equador, ao Peru e aparentemente à Bolívia, através de utilização de
bases militares, poderá se expandir a outros países, em um processo
semelhante ao que ocorreu na Guerra do Vietnã, e levar a pressões
crescentes para procurar obter a colaboração do Brasil e de outros
países sul-americanos para transformar a luta contra a droga (e contra
as Farc e o ELN) em uma empreitada militar sul-americana, e não apenas
colombiano-americana.
O Plano Colômbia faz parte da estratégia americana para assegurar
presença militar direta na região andino-amazônica e inclui aspectos
tais como a reforma das instituições políticas colombianas, em especial
de seu Judiciário, e da legislação para permitir a extradição para os
Estados Unidos não somente de narcotraficantes, cidadãos colombianos,
mas também de guerrilheiros e o deslocamento maciço de camponeses, sem
realização de reforma agrária.
“O Plano Colômbia é parte da primeira das três vertentes da estratégia
militar americana para a América do Sul, cujos outros dois vetores são a
adoção pelos Governos e Forças Armadas da região de teses e esquemas de
segurança cooperativa e, em segundo lugar, o desarmamento inclusive
convencional, dos países da região”
O Plano Colômbia é parte da primeira das três vertentes da estratégia
militar americana para a América do Sul, cujos outros dois vetores são a
adoção pelos Governos e Forças Armadas da região de teses e esquemas de
segurança cooperativa e, em segundo lugar, o desarmamento, inclusive
convencional, dos países da região. A primeira vertente, de que faz
parte o Plano Colômbia, dessa estratégia tem como objetivo estacionar
permanentemente tropas e equipamentos americanos na América do Sul para
facilitar eventuais intervenções. Esta vertente vem se desenvolvendo
pelo menos desde 1994, quando se realizaram as operações militares
americanas denominadas Green Clover e Laser Strike, na região amazônica
de países vizinhos próximas ao Brasil.
A situação gerada pelo Plano Colômbia, iniciativa americana que
ultrapassa em muito seu objetivo declarado, qual seja o mero combate à
produção de drogas, teve, todavia, o mérito de ressuscitar o debate
sobre a Amazônia e sobre as estratégias de desenvolvimento econômico e
político brasileiro para a região e para o país em geral.
A elevada e crescente instabilidade social, política e econômica em
países fronteiriços à Amazônia brasileira permite assim vislumbrar
algumas situações hipotéticas, porém plausíveis no futuro próximo: a
operação (esporádica ou permanente) em território brasileiro de
guerrilhas estrangeiras; o ingresso ocasional de tropas estrangeiras,
americanas ou de países vizinhos, em território brasileiro em
perseguição a guerrilheiros; agressões eventuais a brasileiros nessas
circunstâncias e movimentos significativos de refugiados provenientes de
países limítrofes.
As fronteiras terrestres brasileiras são de 15.600 quilômetros, sendo
que na Amazônia se encontram 13.200 km. Com a Bolívia tem o Brasil três
mil quilômetros de fronteira; com o Peru, três mil; com a Colômbia,
1.600 km; com a Venezuela, 2.200; com a Guiana, 1.600; com a Guiana
Francesa setecentos e com o Suriname seiscentos. A título de comparação
internacional, a fronteira entre a França e a Espanha se alonga por
apenas seiscentos quilômetros e a fronteira entre França e Alemanha tem
450 km. As atividades necessárias à vigilância e à defesa desses treze
mil quilômetros de fronteiras brasileiras em regiões amazônicas
longínquas, de difícil acesso e muitas vezes inóspitas, exigiriam
recursos vultosos para serem minimamente eficientes.
Se a sociedade e as lideranças políticas das regiões mais desenvolvidas
do Brasil continuarem a se revelar míopes ou econômicas diante da
urgência dessa questão se surpreenderão a médio prazo com as
conseqüências de sua omissão pois essas afetarão toda sociedade
brasileira, sem que disso escapem mesmo aquelas regiões distantes da
Amazônia que poderiam parecer a salvo dessas conseqüências.
Qualquer brasileiro preocupado com a escalada da violência e do crime,
sofisticado e pesadamente armado, nas cidades grandes e agora médias, e
com o consumo de drogas em aberta e acelerada expansão no Brasil deve
concordar com a necessidade de eficiente vigilância das fronteiras,
inclusive terrestres. Qualquer indivíduo realista reconhece que esta
vigilância não pode ser feita por organizações privadas mas sim pelo
Estado e que, dentro do Estado, a defesa e o controle das fronteiras
deve caber às Forças Armadas, coadjuvadas pela Polícia. Por violentos e
arbitrários, corruptos e ineficientes que possam ter sido no passado
setores dessas organizações do Estado, e justo o ressentimento social
por fatos lastimáveis e dolorosos cujos responsáveis individuais devem
ser punidos, o que se deve levar em conta no presente é a necessidade da
função que a sociedade necessita exercer e que, para ser exercida, deve
sê-lo através dessas organizações do Estado, de forma eficiente, honesta
e democrática.
“O Projeto Calha Norte, assim como o Projeto Sivam, são importantes
iniciativas no sentido de controle e defesa das fronteiras”
Assim, o Projeto Calha Norte, assim como o Projeto Sivam, são
importantes iniciativas no sentido de controle e defesa das fronteiras.
O Projeto Calha Norte, iniciado em 1985, tem como objetivo instalar
unidades militares de apoio às populações civis ao longo da faixa de
fronteiras e assim prevenir e desestimular eventuais ingressos no
território brasileiro de insurgentes e contribuir para o controle de
atividades ilícitas, em especial o contrabando e o narcotráfico. O
Projeto Calha Norte pode vir a se transformar de hipotética ameaça em
poderoso instrumento de integração bilateral na medida em que se possa
associar cada país vizinho em sua execução e assim torná-lo um elemento
de aproximação política e de integração física e econômica das
populações das fronteiras e dos próprios países em geral.
O Projeto Sivam - Sistema de Vigilância Aérea da Amazônia - corresponde
a um conjunto de unidades rastreadoras de sinais de satélite, que
permite a detecção de atividades ilegais, a localização de aeronaves
clandestinas envolvidas com o tráfico de drogas, de atividades de
desmatamento e queimadas, e no qual há grande interesse dos Estados
vizinhos em participar.
A eventual ineficiência ou corrupção, real ou imaginada, que tais
programas tenham revelado ou propiciado não significa que a sociedade
brasileira, mesmo aqueles setores que se julgam distantes da Amazônia e
assim indiferentes à soberania brasileira sobre essa região, possa
prescindir deles. Como tornar essas organizações e programas do Estado
eficientes e garantir o controle social sobre a formulação e execução de
políticas de defesa de fronteiras é questão distinta e deve ser
resolvida através de mecanismos de controle permanente do Congresso, com
o auxílio da sociedade civil.
A questão da Amazônia e a situação de instabilidade ao longo das
fronteiras torna assim cada vez mais importante enfrentar uma questão
essencial para a evolução a médio e a longo prazo da sociedade
brasileira, qual seja a da reconciliação efetiva entre certos segmentos
da sociedade civil e as Forças Armadas brasileiras. A divisão que
ocorreu no passado, devido aos excessos e a ilegalidades cometidas, em
especial à época da repressão mais violenta do Estado à guerrilha, não
pode prosseguir indefinidamente. É necessário que a sociedade brasileira
faça esforços constantes para fortalecer e fomentar uma crescente coesão
entre suas organizações civis e militares, sem se deixar iludir pela
utopia da construção de uma sociedade sem Forças Armadas. O que deve ser
ressaltado nesses esforços é a necessidade de construir Forças Armadas
democráticas, eficientes, voltadas para a defesa dos interesses
brasileiros, diante da ação de Potências extra-regionais, cujo
interesse, aliás, é desarmar a sociedade brasileira e torná-la mais
vulnerável à sua influência e a seus objetivos nacionais.
Assim, a proteção militar eficiente para garantir a inviolabilidade das
fronteiras e a segurança das populações brasileiras que nessas regiões
habitam, assim como a enérgica recusa brasileira a que se utilizem na
Colômbia métodos de combate à droga e de erradicação de plantações que
possam vir a afetar o ecossistema da Amazônia brasileira, devem ser
prioridades do Governo e da sociedade brasileiros.
A questão do narcotráfico, quanto à produção e ao comércio, está
vinculada aos sistemas predatórios e voluntaristas de exploração
econômica para exportação, implantados na Amazônia. Esses sistemas
atraíram populações de outras regiões do país e financiaram projetos de
colonização orientados inicialmente para a criação de gado e mais
recentemente para o cultivo de arroz e de soja, que levaram e levam ao
desflorestamento. O rápido esgotamento do solo e a geração de desemprego
pela monocultura e pela pecuária extensiva e a descoberta de jazidas de
ouro lançaram as populações desempregadas na garimpagem e no tráfico de
drogas e de agentes químicos, que se articulam por sua vez com a rede
internacional de contrabando de ouro, pedras preciosas e armas, que, por
definição, desconhece fronteiras.
De outro lado, a questão geral do narcotráfico está profundamente
vinculada às normas de funcionamento do sistema financeiro nacional e
internacional as quais permitem, na prática, a lavagem de dinheiro e sua
transferência legal para os grandes centros financeiros e para os
megabancos. A resistência à quebra de sigilo bancário por parte dos
grandes bancos, em especial nos paraísos fiscais, e a relutância dos
Governos dos países desenvolvidos em controlar seu sistema financeiro,
fazem com que haja um esforço permanente em colocar o ônus político da
imagem de fonte de corrupção e crime e o custo financeiro do combate à
droga nos Estados da periferia.
No caso do Brasil, o controle indispensável de fronteiras será de pouca
eficiência se não for acompanhado, de um lado, pela obrigatoriedade dos
bancos privados de declararem ao Banco Central os depósitos em espécie
acima de certos valores e de exercerem controle efetivo sobre a abertura
de contas laranja e, por outro lado, de maior fiscalização pelo Banco
Central sobre a movimentação financeira para o exterior das agências
bancárias privadas, em especial nas áreas de fronteira. Ainda que tais
medidas possam contribuir para o combate ao tráfico de drogas, à evasão
de divisas e à lavagem de dinheiro, somente programas voltados para a
redução sistemática do desemprego, para a organização de atividades
sociais para jovens nas periferias, para a redução da propaganda da
violência nos meios de comunicação, e finalmente a descriminação do
consumo de drogas poderão de fato atingir as causas profundas da demanda
por narcóticos, que vão muito além da indução dos traficantes.
Essas causas não podem ser eliminadas pelos programas de erradicação e
substituição da produção, que se revelarão sempre frustrantes e
ilusórios, levando apenas ao deslocamento geográfico de áreas de
produção e à expansão da produção de drogas sintéticas, responsáveis por
parcela superior a 50% do consumo global de narcóticos, antidepressivos
e estimulantes no mundo, fabricados nos países altamente desenvolvidos.
A questão do narcotráfico é politicamente importante devido à
infiltração de seus integrantes e representantes no sistema político, no
Executivo, no Legislativo e no Judiciário, municipais, estaduais e
federais. É necessário analisar a evolução dos mecanismos dessa
infiltração na Colômbia e em outros países, inclusive países
consumidores desenvolvidos, para melhor combatê-la no Brasil. Forma
possível de combate a essa infiltração política nos organismos do Estado
seria a adoção de legislação exigindo a suspensão automática de sigilo
bancário de todos os ocupantes e candidatos a cargos no Executivo,
Legislativo e Judiciário. A questão da infiltração política vem se
agravando na medida em que o Brasil passa de uma situação de país de
trânsito para uma situação de consumo crescente e difuso de drogas.
* Esta é a primeira parte de um artigo recém-produzido pelo autor. A
segunda parte será divulgada em breve também na Carta Maior
(www.cartamaior.com.br)
(*) Samuel Pinheiro Guimarães é secretário-geral das Relações
Exteriores do Brasil.
fonte: Boletim Aepet - 3/6/2005 - transcrito também no saite
www.pdt-rj.org.br
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