Abaixo, transcrevo um artigo da Scientific American Brasil, deste mês,
que trata de como a linguagem
(idioma) influencia o processo cognitivo (e vice-versa). É bastante
interessante e, em muitos trechos,
bastante engraçado.
Obs.: O artigo está disponível diretamente no site da Scientific
American Brasil:
http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/como_a_linguagem_modela_o_pensamento.html
Paulo
*Como a Linguagem Modela o Pensamento*
*Diferentes idiomas afetam de maneiras distintas a percepção do mundo*
/por Lera Boroditsky/
Estou diante de uma menina de 5 anos em pormpuraaw, uma pequena
comunidade aborígene na borda oeste do Cabo York, no norte da Austrália
Quando peço para ela me mostrar o norte, ela aponta com precisão e sem
hesitação. A bússola confirma que ela está certa. Mais tarde, de volta a
uma sala de conferências na Stanford University, faço o mesmo pedido a
um público de ilustres acadêmicos, ganhadores de medalhas de ciência e
prêmios de gênios. Peço-lhes para fechar os olhos (para que não nos
enganem) e apontem o norte. Muitos se recusam por não saberem a
resposta. Aqueles que fazem questão de se demorar um pouco para refletir
sobre o assunto, em seguida apontam em todas as direções possíveis.
Venho repetindo esse exercício em Harvard e Princeton e em Moscou,
Londres e Pequim, sempre com os mesmos resultados.
Uma criança de cinco anos de idade em uma cultura pode fazer algo com
facilidade que cientistas eminentes de outras culturas lutam para
conseguir. O que poderia explicar isso? Parece que a resposta
surpreendente é a linguagem.
A noção de que diferentes idiomas possam transmitir diferentes
habilidades cognitivas remonta a séculos. Desde 1930, essa associação
foi indicada pelos linguistas americanos Edward Sapir e Benjamin Lee
Whorf, que estudaram como as línguas variam, e propuseram maneiras pelas
quais os falantes de idiomas distintos podem pensar de forma diferente.
Na década de 70, muitos cientistas ficaram decepcionados com a hipótese
de Sapir-Whorf, e ela foi praticamente abandonada. Mas agora, décadas
depois, um sólido corpo de evidências empíricas demonstrando como os
diferentes idiomas modelam o pensamento finalmente emergiu. As
evidências derrubam o dogma de longa data sobre a universalidade e
rendem visões fascinantes sobre as origens do conhecimento e a
construção da realidade. Os resultados têm implicações relevantes para o
direito, a política e a educação.
Ao redor do mundo, as pessoas se comunicam usando uma deslumbrante
variedade de idiomas -- mais ou menos 7 mil ao todo --, e cada um deles
exige condições muito diferentes de seus falantes. Suponha, por exemplo,
que eu queira dizer que vi a peça Tio Vânia na Rua 42. Em mian, língua
falada em Papua, Nova Guiné, o verbo que usei revelaria se o evento
acabou de acontecer, aconteceu ontem ou em passado remoto, enquanto na
Indonésia, o verbo não denotaria sequer se o evento já aconteceu ou
ainda está para acontecer. Em russo, o verbo revelaria o meu gênero. Em
mandarim, eu teria de especificar se o tio do título é materno ou
paterno e se ele está relacionado por laços de sangue ou de casamento,
porque há vocábulos diferentes para todos esses tipos diferentes de tios
e assim por diante (ele é irmão da mãe, como a tradução chinesa
claramente expressa). E em pirarrã, língua falada no Amazonas, eu não
poderia dizer "42", porque não há palavras que expressem números exatos,
apenas vocábulos para "poucos" e "muitos".
Pesquisas em meu laboratório e em vários outros vêm descobrindo como a
linguagem molda até mesmo as dimensões mais fundamentais da experiência
humana: espaço, tempo, causalidade e relacionamentos com os outros.
Voltemos a Pormpuraaw. Ao contrário do inglês, o kuuk thaayorre, idioma
falado em Pormpuraaw não usa termos relativos ao espaço como esquerda e
direita. Em vez disso, os falantes de kuuk thaayorre conversam em termos
de pontos cardeais absolutos (norte, sul, leste, oeste, e assim por
diante). Claro que, em inglês também há termos designando os pontos
cardeais, mas apenas em grandes escalas espaciais. Não diríamos, por
exemplo: "Eles colocaram os garfos de sobremesa a sudeste dos garfos
grandes." Mas em kuuk thaayorre os pontos cardeais são usados em todas
as escalas. Isso significa que acaba se dizendo coisas como "o copo está
a sudeste do prato" ou "o menino em pé ao sul de Mary é meu irmão". Em
Pormpuraaw, deve-se estar permanentemente orientado, apenas para
conseguir falar corretamente.
Além disso, o trabalho inovador realizado por Stephen C. Levinson, do
Instituto Max Planck de Psicolinguística, em Nijmegen, na Holanda, e
John B. Haviland, da University of California em San Diego, durante as
duas últimas décadas têm demonstrado que falantes de idiomas que se
valem de direções absolutas são especialmente bons em manter o registro
de onde estão, mesmo em paisagens desconhecidas ou no interior de
edifícios estranhos. Eles fazem isso melhor que quem vive nos mesmos
ambientes, mas não falam essas línguas.
Pessoas que pensam de modo diferente sobre o espaço também são
suscetíveis a pensar de forma diferente sobre o tempo. Por exemplo,
minha colega Alice Gaby, da University of California em Berkeley e eu
demos aos falantes de kuuk thaayorre conjuntos de fotos que mostravam
progressões temporais: o envelhecimento de um homem, o crescimento de um
crocodilo, uma banana sendo consumida. Em seguida, pedimos que
organizassem as imagens embaralhadas no chão para indicar a sequência
temporal correta.
Testamos cada pessoa duas vezes, cada vez elas olhavam para um ponto
cardeal diferente. Os falantes de inglês que recebem esta tarefa vão
organizar as cartas de modo que o passar do tempo seja da esquerda para
a direita. Os de língua hebraica tenderão a colocar as cartas da direita
para a esquerda. Isso mostra que a direção da escrita em uma linguagem
influencia a forma como organizamos o tempo. Os kuuk thaayorre, porém,
rotineiramente não organizam as cartas da esquerda para a direita ou da
direita para a esquerda. Eles as arrumaram de leste para o oeste. Isto
é, quando estavam sentados de frente para o sul, as cartas ficaram da
esquerda para a direita. Quando encaravam o norte, as cartas ficaram da
direita para a esquerda. Quando olhavam para o leste, as cartas vinham
na direção do corpo, e assim por diante. Nunca dissemos a ninguém que
direção eles estavam encarando -- os thaayorre kuuk já sabiam disso e
espontaneamente usaram essa orientação espacial para construir suas
representações do tempo.
As representações do tempo variam de muitas outras maneiras pelo mundo.
Por exemplo, os falantes de inglês consideram que o futuro fica
"adiante" e o passado "para trás". Em 2010, Lynden Miles da University
of Aberdeen, na Escócia, e seus colegas descobriram que os falantes de
inglês, inconscientemente, balançam seus corpos para a frente, ao pensar
no futuro, e, para trás, ao considerar o passado. Mas em aimará, um
idioma falado na cordilheira dos Andes, dizem que o passado está à
frente e o futuro atrás. E a linguagem corporal dos falantes de aimará
corresponde ao seu modo de falar: em 2006, Rafael Núñez, da University
of Califórnia em San Diego e Eve Sweetser, da mesmo universidade, no
campus de Berkeley, descobriram que os aimarás gesticulam na frente
deles quando falam do passado, e atrás deles quando discutem o futuro.
Lembrando "quem fez o quê?"
Os falantes de línguas diferentes também diferem na forma como descrevem
os eventos e podem se lembrar bem de quem fez o quê. Todos os
acontecimentos, mesmo os acidentes ocorridos em frações de segundos, são
complexos e exigem que analisemos e interpretemos o que aconteceu.
Tomemos, por exemplo, o caso do ex-vice- presidente Dick Cheney na caça
de codornas, na qual, ele atirou em Harry Whittington, por acidente.
Pode-se dizer que "Cheney atirou em Whittington" (em que Cheney é a
causa direta), ou "Whittington foi baleado por Cheney" (distanciando
Cheney do resultado), ou "Whittington levou um bom chumbinho" (deixando
Cheney totalmente de fora). O próprio Cheney disse: "Resumindo, eu sou o
cara que puxou o gatilho que disparou a bala que atingiu Harry",
interpondo uma longa cadeia de ações entre ele e o resultado. A fala do
então presidente George Bush: "Ele ouviu um movimento de pássaro,
virou-se, puxou o gatilho e viu seu amigo se ferir", foi uma desculpa
ainda mais magistral, transformando Cheney de agente a mera testemunha
em menos de uma frase.
Minha aluna Caitlin M. Fausey e eu descobrimos que diferenças
linguísticas influenciam o modo pelo qual as pessoas analisam o que
aconteceu e exercem consequências na memória de testemunhas. Em nossos
estudos, publicados em 2010, falantes de inglês, espanhol e japonês
assistiram a vídeos de dois rapazes estourando balões, quebrando ovos e
derramando bebidas intencionalmente, ou sem querer. Mais tarde, passamos
aos participantes um teste de memória pelo qual tinham de dizer qual
sujeito havia feito a ação, exatamente como numa fileira diante da
polícia. Outro grupo de falantes de inglês, espanhol e japonês descreveu
os mesmos acontecimentos. Quando olhamos para as informações da memória,
encontramos exatamente as diferenças na memória de testemunhas oculares
previstas pelos padrões de linguagem. Os falantes de todos os três
idiomas descreveram as ações intencionais usando o agente, dizendo
coisas como "Ele estourou o balão", e todos os três grupos lembraram
igualmente bem de quem fizera essas ações intencionais. Entretanto,
quando passaram para os acidentais, surgiram diferenças interessantes.
Os falantes de espanhol e japonês foram menos propensos a descrever os
acidentes que os que falavam inglês. E, da mesma forma, lembraram- se
menos do agente que os que falavam inglês. Isso não aconteceu por terem
pior memória global -- eles se lembraram dos agentes de eventos
intencionais (para os quais seus idiomas naturalmente mencionariam os
agentes), da mesma forma que fizeram os indivíduos de língua inglesa.
Não apenas as línguas influenciam o que lembramos, mas as estruturas dos
idiomas podem facilitar ou dificultar o nosso aprendizado de coisas
novas. Por exemplo, pelo fato de as palavras correspondentes a número em
alguns idiomas revelarem a base decimal implícita mais claramente que em
inglês (não há adolescentes problemáticos, com 11 ou 13 anos, em
mandarim, por exemplo), as crianças que aprendem essas línguas são
capazes de interiorizar mais rapidamente a base decimal. E, dependendo
de quantas sílabas as palavras relativas a números têm, será mais fácil
ou mais difícil memorizar um número de telefone ou fazer cálculo mental.
A linguagem pode até afetar a rapidez com que as crianças descobrem se
pertencem ao sexo masculino ou feminino.
O QUE MODELA O QUÊ ?
Essas são apenas algumas das fascinantes descobertas das diferenças
translinguísticas em cognição. Mas, como saber se as diferenças na
linguagem criam diferenças em pensamento, ou se é o contrário? Parece
que a resposta inclui os dois: a maneira como pensamos influencia a
maneira de falar, mas a influência também age na direção contrária.
Durante a década anterior, vimos uma infinidade de demonstrações
engenhosas estabelecendo que a linguagem realmente desempenha papel
causal na formação da cognição. Estudos demonstraram que ao mudar o modo
de falar, mudamos a maneira de pensar. O ensino de novas denominações de
cores, por exemplo, muda a capacidade de as pessoas as discriminarem.
Pessoas bilíngues mudam o modo de enxergar o mundo dependendo do idioma
que falam. Duas descobertas publicadas em 2010 demonstram que mesmo algo
tão fundamental quanto de quem você gosta e não gosta depende do idioma
em que é feita a pergunta.
Esses estudos, um de Oludamini Ogunnaike e seus colegas de Harvard e
outro de Shai Danziger e seus colegas da Universidade Ben-Gurion de
Negev, Israel, observaram bilíngues nos idiomas árabe e francês em
Marrocos, espanhol e inglês nos Estados Unidos, e árabe e hebraico em
Israel, em cada caso foram testadas as tendências implícitas dos
participantes. Por exemplo, pediram às pessoass bilíngues em árabe e
hebraico que apertassem rapidamente botões em resposta a palavras,
mediante várias situações. Em uma delas, foram instruídos para, ao verem
um nome hebreu como "Yair", ou uma característica positiva como "bom" ou
"forte", pressionarem "M"; se vissem um nome árabe como "Ahmed" ou um
aspecto negativo como "mesquinho" ou "fraco", deveriam pressionar "X".
Em outra situação, a paridade foi revertida, de modo que os nomes
judaicos e características negativas partilhavam um botão e nomes árabes
e aspectos positivos correspondiam a um só botão. Os pesquisadores
mediram a rapidez com que os indivíduos foram capazes de responder nas
duas condições. Essa tarefa tem sido amplamente utilizada para medir
tendências involuntárias ou automáticas -- com que naturalidade coisas
como características positivas e grupos étnicos parecem se corresponder
na mente das pessoas.
Surpreendentemente, os pesquisadores verificaram grandes mudanças nessas
tendências involuntárias automáticas em indivíduos bilíngues, dependendo
do idioma em que foram testadas. Os bilíngues em árabe e hebraico
mostraram atitudes implícitas mais positivas em relação aos judeus
quando testados em hebraico que quando testados em árabe.
A linguagem também parece estar envolvida em muitos mais aspectos de
nossa vida mental que os cientistas previamente supunham. As pessoas
confiam na língua, mesmo quando fazem coisas simples como distinguir
manchas de cor, contar pontos em uma tela ou se orientar em uma pequena
sala: meus colegas e eu descobrimos que, ao limitar a capacidade de
acesso às faculdades linguísticas fluentes de um indivíduo, dando-lhe
uma tarefa verbal que exige competição, como repetir uma notícia,
prejudica a capacidade de executá-la. Isso significa que as categorias e
as distinções que existem em determinados idiomas interferem amplamente
em nossa vida mental. O que os pesquisadores vêm chamando de
"pensamento" esse tempo todo na verdade parece ser uma reunião de ambos:
processos linguísticos e não linguísticos. Assim, pode não existir
grande quantidade de pensamento humano adulto quando a linguagem não
desempenha um papel significativo.
Uma característica marcante da inteligência humana é a sua
adaptabilidade, a capacidade de inventar e reorganizar os conceitos do
mundo de modo a se adequar às mudanças de metas e ambientes. Uma
consequência dessa flexibilidade é a enorme diversidade de idiomas que
surgiu ao redor do mundo. Cada um oferece o seu próprio conjunto de
ferramentas cognitivas e engloba o conhecimento e a visão de mundo
desenvolvidos ao longo de milhares de anos dentro de uma cultura. Cada
um tem uma forma de perceber, classificar e fazer sentido no mundo, um
guia inestimável desenvolvido e aperfeiçoado por nossos antepassados. A
investigação sobre a forma como o idioma que falamos molda a nossa forma
de pensar está ajudando os cientistas a desvendar o modo como criamos o
conhecimento e construímos a realidade e como conseguimos ser tão
inteligentes e sofisticados. E essa percepção ajuda- nos a compreender
exatamente a essência daquilo que nos faz humanos.
Lera Boroditsky Lera Boroditsky é professora-assistente de psicologia
cognitiva da Stanford University e editora-chefe de Frontiers in
Cultural Psychology. Seu laboratório faz experimentos em todo o mundo,
concentrando-se em representações mentais e nos efeitos do idioma na
cognição
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