Caro Manuel,

Obrigado pela interessante compilação de contradições.

Só gostaria de notar que,  pela terminologia das Lógicas da Inconsistência
Formal o que temos são ※de fato※ contradições,e elas são ※realmente※
inconsistentes,  porque conseguimos sobreviver com elas sem explodir nossos
códigos,  religiões, etc.

Se fossem contradições a respeito de coisas consistentes,  não saberíamos o
que fazer...

Abraços,

Walter


Em 6 de jul de 2017 08:14, "Manuel Doria" <manueldo...@gmail.com> escreveu:

1) Segundo o blog *Love Reading* (http://blog.lovereading.co.
uk/special-features/08/the-most-popular-books-of-all-time/), o Alcorão foi
impresso mais de 3 bilhões de vezes e a Bíblia do Rei Jaime, cerca de 2.5
bilhões de vezes (estimativas para o número total de Bíblias contando
outras traduções vão para 5 bilhões).

Conjuntamente com "O Pequeno Livro Vermelho" (https://en.wikipedia.org/
wiki/Quotations_from_Chairman_Mao_Tse-tung), esses são possivelmente os
maiores best sellers da humanidade.

Segundo o site *Skeptic's Annotated Bible*, a Bíblia possui 536
contradições internas:
http://skepticsannotatedbible.com/contra/number.html

No site BibViz (http://bibviz.com/), há uma representação gráfica
interessante dessas contradições.

O mesmo site compila 32 contradições no Alcorão; aparentemente é um livro
bem mais internamente consistente:
http://skepticsannotatedbible.com/quran/contra/by_name.html

2) Outro documento famoso é a Declaração Universal dos Direitos Humanos (
http://www.un.org/en/udhrbook/pdf/udhr_booklet_en_web.pdf)

Eu encontrei a seguinte contradição; o Artigo 4 proíbe a escravidão em
qualquer forma. O Artigo 18 assegura a liberdade de crença e de *prática*
religiosa. Mas há religiões cuja prática envolve a instituição da
escravidão: (https://en.wikipedia.org/wiki/Slavery_and_religion).

Provavelmente o Artigo 18 dá galho com vários outros artigos por razões
similares.

3) A Constituição Americana é outro documento famoso acusado de ser
contraditório. Dentro da comunidade lógica, há o folclore famoso sobre o
episódio da obtenção de cidadania americana de Kurt Gödel (
http://morgenstern.jeffreykegler.com/).

Pela internet, é fácil achar alegadas instâncias específicas de
contradições nesse documento por parte de ativistas politicamente
libertários:

https://www.lewrockwell.com/2012/04/scott-lazarowitz/the-
self-contradictory-us-constitution/
http://www.skepticaleye.com/2012/11/constitutional-contradictions.html

Por exemplo; a Primeira Emenda garante liberdade de expressão irrestrita.
Mas a Décima Quarta Emenda asserta que dívidas públicas da União
autorizadas por lei são inquestionáveis.

Não me lembro se foi o Profesor Newton quem apontou que qualquer
constituição que permita cláusulas pétreas ao mesmo tempo que permita que
assembléias legislativas façam adendos às mesmas está sendo inconsistente.

5) Não achei exemplos muito explícitos de contradições na nossa
Constituição Federal de 1988 (http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm)

A palavra "contradição" no meio jurídico parece ser um termo de arte com
outro significado.

Parece existir galho no Artigo 5 que asserta o princípio da isonomia, a
igualdade de todos os brasileiros perante a lei. Mas o Artigo 53, por
exemplo, estabelece que os membros do Congresso estão sujeitos à lei de
forma diferenciada.

6) Existem contradições em livros de ficção famosos também. Por exemplo, em
"A Guerra dos Tronos", é dito que o Rei Renly Barathreon tem olhos verdes
mas em "A Fúria dos Reis", é dito que ele tem olhos azuis:
https://www.quora.com/Are-there-any-inconsistencies-in-ASOIAF-world

Classicistas já analisaram a fundo inconsistências na Ilíada e Odisséia:
https://www.jstor.org/stable/283192

Enfim, isso foi apenas um exercício para mostrar a prevalência de
documentos *prima facie* inconsistentes que são socialmente e politicamente
importantes.

Como adendo final, apesar das fartas diferenças existentes entre textos
religiosos, legais e literários, as estratégias para se livrar de
contradições são bem parecidas:

1) Erro não-intendido do autor: simplesmente uma das sentenças está falsa e
precisa ser substituída por outra. Por exemplo, vários erros envolvendo
quantidades na Bíblia são justificados apologeticamente como sendo erros de
copistas de manusritos.

2) Diferença semântica e pragmática: aqui é o grosso tanto da apologética e
hermenêutica religiosa quanto da juriprudência. As contradições são apenas
aparentes, não são contradições reais - por trás da estrutura gramatical
superficial, podem haver diferenças de polissemia, âmbitos, escopos,
domínios e intenções do autor que tornam a conjunção de sentenças
consistente entre si.

3) Retcon: é uma família de heurísticas típicas da literatura contemporânea
(https://en.wikipedia.org/wiki/Retroactive_continuity) mas que já vi sendo
aplicadas em contextos religiosos e legais. O autor intende que sentenças
adicionadas mais recentemente e que sejam inconsistentes com sentenças
registradas no passado prevaleçam sobre estas; retroativamente, os
registros do passado se modificam semanticamente visando acomodar a
informação mais nova e a contradição é dissolvida.

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