Oi João!

Vou responder em dois e-mails. Deixa eu começar mandando o link de um
texto sobre isso que virou o favorito da minha coleção...

https://silviacavalcante.blogspot.com/2020/10/diario-de-quarentena-sete-meses-depois.html

e vou mandar também - abaixo - os trechos que eu considero mais
importantes, porque se eu não fizer isso a chance dos engenheiros
entenderem vai ser zero, né... =P

Lá vai. [[]], E.

  --snip--snip--

A marcação de gênero nas palavras é arbitrária e variável nas línguas
e não tem nada a ver com o significado da palavra no mundo biossocial
(para usar os termos de Câmara Jr.). O que acontece em PB? Acontece
que algumas palavras estão começando a ser marcadas gramaticalmente
com gênero neutro para marcar uma não oposição no mundo biossocial: em
português temos morfemas específicos para marcar feminino, que se opõe
ao masculino, no mundo biossocial, mas o não binário não tem uma
marcação gramatical específica. Ou não tinha. Não tinha. Porque agora
tem: surgem os pronomes e as desinências de neutro para marcar
gramaticalmente uma oposição biossocial. E aí eu estou usando a
palavra oposição propositadamente: mesmo que a intenção dos indivíduos
não-binários que sentiram a necessidade de serem referidos como "elu"
e com a desinência -e, gramaticalmente agora elus se opõem ao
masculino e ao feminino. Então, para substantivos (e aí os adjetivos
por concordância) que tenham o traço [+humano] temos a oposição
masculino / feminino / neutro: aluno / aluna / alune; ele / ela/ elu;
dele / dela / delu; cansado / cansada / cansade. (OBS: Reparem que não
estou marcando o -o das palavras masculinas, porque não é morfema de
gênero, e, sim vogal temática.)

(...)

E se a gente fizer uma busca na internet, verá que várias línguas
estão usando formas gramaticais de marcar a linguagem neutra, ou a
linguagem inclusiva de gênero. Vocês podem procurar por "gender
inclusive language" e vão achar vários artigos falando em como é esse
uso em diversas línguas. Eu, particularmente, fiquei feliz quando vi
que é uma tendência linguística de amplo espectro. Então,
morfologicamente, não há problema algum em linguagem neutra. Há
problema quando a gente não sabe fazer análise morfológica e confunde
gênero gramatical com gênero no mundo biossocial. E os morfemas e
pronomes só são usados para palavras que designam serem [+humanos],
porque a questão da marcação é uma necessidade dos indivíduos
não-binários. E isso nos leva ao segundo ponto dessa (não tão breve
assim) explicação:

Por que isso acontece? A Sociolinguística está aí para nos dizer que
esse fenômeno da marcação de gênero é um fenômeno variável socialmente
motivado. Língua é identidade, e se um grupo de indivíduos (um grande
grupo, diga-se de passagem) motivado por razões sociais marcar
linguisticamente sua identidade, essa marcação é tão válida quanto
quaisquer outras manifestações de identidade linguística.

A gente sabe disso meio que informalmente com determinados dialetos
urbanos que surgem, como, por exemplo, o dialeto pajubá, que tem
origem em algumas palavras de origem das línguas africanas e é usado
por determinados grupos: de religiões afrodescendentes como umbanda e
candomblé e também pela comunidade LGBT. A gente também reconhece
variação linguística dialetal quando identificamos traços
característicos dos subfalares do Norte e dos subfalares do Sul do
Brasil, pra usar os termos de Antenor Nascentes. A gente sabe disso
quando determinados fenômenos linguísticos são característicos de
determinados grupos sociais, como por exemplo a regra variável de
concordância verbal (nós vai / nós vamos) que muda a medida que o
nível de escolaridade dos indivíduos muda.

(...)

Tenho visto também as pessoas que são a favor das formas com
pensamentos prescritivistas: "isso é o certo", "todo mundo tem que
falar assim", "essa linguagem é melhor do que todas as outras". Não,
não mesmo. É o certo no sentido de que qualquer variedade linguística
de uma determinada língua é válida. Mas não é fazendo manual
prescritivista que as pessoas vão passar a usar a linguagem neutra.
Então, menos prescrição do ponto de vista de quem defende, e mais
descrição linguística. Aqui, eu fiz uma breve análise morfológica
baseada em Câmara Jr. Mas não sou morfóloga, sou sintaticista, e há
várias outras abordagens sobre gênero gramatical dentro de diferentes
quadro teóricos que podem explicar com muito mais propriedade o que eu
escrevi no início desse texto. Mas eu quis mostrar uma abordagem
dentro de um quadro teórico que dá conta do fenômeno que está aí, em
diversas línguas, não só o Português Brasileiro. Um fenômeno que está
aí independentemente de corrente política. O que me leva ao último
ponto: não sejam reducionistas.

Tenho visto postagens criticando o uso da linguagem neutra fazendo uma
oposição: "a população está pagando 50 reais o quilo do arroz e a
esquerda quer ensinar pronome neutro". Então, não sejamos
reducionistas assim. Não é porque estamos passando por um momento de
crise econômica que a gente não pode discutir fenômenos linguísticos
relevantes para o estudo da sociedade. Se fosse assim, a gente vai
estudar o quê? A gente vai discutir o quê nas nossas escolas públicas?
Não vamos discutir marxismo nas escolas públicas, porque as crianças
não têm comida. Não vamos ensinar logaritmo de base negativa, porque
nossas crianças passam fome. Não vamos discutir ciclo de Krebs, porque
nossas crianças não têm comida para alimentar suas células. E é isso o
que a gente quer? Não! A gente quer poder discutir dialetos legítimos
socialmente e lutar para que nossa sociedade seja menos desigual.
Ambas as discussões são válidas e uma não se opõe a outra.

On Sun, 22 Aug 2021 at 13:07, Joao Marcos <botoc...@gmail.com> wrote:

> > eu resolvi o problema da "não pronunciabilidade" das terminações em
> > "x" e em "@" de um jeito super simples: eu mostro, ou conto, esses
> > argumentos aqui,
> >
> >   http://angg.twu.net/xs.html
>
> Boa, Eduardo, vou ler!  Você pode adiantar qual a solução que você
> mesmo adota para o problema dos pronomes possessivos em português?
>
> Escrever é fácil, e até trocar o nome de batismo de uma pessoa, na
> prática, é fácil (trocar o gênero do pronome de tratamento, contudo,
> pode ser um desafio maior, se tivermos que vencer um costume anterior
> --- sim, eu convivo com um@ adolescente trans, e tenho sentido isso na
> carne).  Quanto à "pronunciabilidade", de todo modo, eu vou ficar
> satisfeito quando aqueles que propuserem "soluções" mostrarem que
> conseguem _implementá-las_ em seus próprios discursos. :-b
>
> (Estou assumindo que a "neutralização" dos nomes não é bem conseguida
> se não vier acompanhada de uma _boa_ "neutralização" dos pronomes,
> todos os pronomes.  Por este motivo, a minha pergunta sobre os
> pronomes possessivos foi legítima --- e respostas são bem-vindas!)
>
> []s, Joao Marcos
>

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