Pois ontem sentei pra ler a versão do projeto do Azeredo anexada ao
parecer da CCJ, publicada no site da Safernet, antes de escrever o
artigo que publiquei ontem e mencionei aqui há pouco.
http://fsfla.org/svnwiki/blogs/lxo/2008-07-01-do-celular-direto-pra-cela.pt

Fiquei contente de ver que várias das ponderações que nós havíamos
apontado antes foram acatadas e integradas ao projeto.  Não é mau
sinal.

Hoje li a mensagem de Roberto Santos, repassada por Marcelo Branco, e
tive a impressão de que esta última versão do projeto já contemplava,
pelo menos em grande parte, aquelas sugestões.

Então resolvi dar uma nova passada no projeto de lei, tentando não
carregar idéias presentes em versões anteriores do projeto.
http://www.safernet.org.br/tmp/PLS-Azeredo-aprovado-CCJ-18jun2008.pdf

Não vou dizer que o projeto me agrade como um todo, mas tenho a
impressão de que há mais alarde e pânico a respeito do que ele merece.
Deixa eu tentar substanciar minha posição, ponderando sobre:

- preservação de logs de comunicação para prova judicial

- restrições à livre expressão

- criminalização das vítimas de estelionato

- criminalização da visita a páginas contendo material previamente
desconhecido, porém distribuído em desconformidade com a lei vigente

- criminalização das vítimas de código malicioso

- criminalização da posse de fotografias familiares e de revistas e
filmes eróticos adulto

- criminalização da denúncia, preservação e apresentação de provas
judiciais em crimes de pedofilia


Primeiro, não há mais aquela exigência de cadastro de documentos de
identificação junto a provedores.  Isso foi retirado.  Cabe ainda ao
provedor registrar e armazenar de forma segura logs de conexões de
seus clientes, fornecê-los a autoridades investigatórios após
requisição judicial, e *repassar* denúncias de que tome conhecimento
de possíveis crimes cometidos utilizando suas redes às autoridades
competentes.  Não vejo nada que obrigue o provedor a tomar a
*iniciativa* de denunciar com base em informação dos logs, ao
contrário do que li por aí.

Não vou dizer que essas obrigações sejam boas.  Não são.  Obrigar o
provedor a manter essa informação, na ausência de qualquer
investigação em curso, tem custos e riscos para a privacidade, pois a
informação pode passar a ser um alvo valioso, inclusive pelas
exigências de segurança e as multas previstas para os casos de a
informação vazar.  De um jeito de outro, esses custos e multas serão,
de um jeito ou de outro, incorporados aos valores pagos por
consumidores aos provedores, aumentando o nosso grand canion digital e
os preços já elevados que pagamos por acesso à informação.

Por outro lado, não é de se imaginar que provedores já não façam coisa
parecida, não só como parte de procedimentos de medição de serviço,
mas também como forma de defesa no caso de receberem acusações de
prática de crimes.  Tendo os logs, podem comprovar que a origem dos
crimes não é sua própria rede interna, mas sim a de um cliente, ou
mesmo algum agente externo.  Qualquer um que mantenha uma rede que
permita acesso a outros, seja ela aberta ou não, deveria manter esse
tipo de log, para sua própria segurança jurídica.  De preferência,
critografados com uma chave assimétrica, cujo par necessário para
decodificar seja mantido fora da rede.

Quer dizer, a informação dos logs de conexões provavelmente já é
coletada, da mesma forma que a companhia telefônica coleta informação
sobre as ligações, e não há regulamentação hoje sobre as penalidades
no caso de essa informação sobre conexões de rede vazar, nem sobre
critérios de segurança para proteção da privacidade do consumidor, nem
sobre quem e como pode exigir essa informação.  Essa regulamentação é
bem-vinda.

Além do mais, a lei não especifica o que é "conexão".  Parece que tem
gente lendo isso como sessão TCP, o que seria muita informação e
deixaria de fora qualquer comunicação SCTP, UDP, ICMP, etc.  Tenho a
impressão de que a letra da proposta dá margem a uma leitura
diferente, já que se exige o registro apenas do endereço de origem,
que pode muito bem ser o IP do cliente, no momento em que estabelece
conexão com a rede do provedor, isto é, no momento em que o provedor
do acesso à rede lhe oferece, para uso exclusivo, o tal endereço IP.

É claro que IPs podem ser forjados, logs podem ser falsificados e
corrompidos (por isso mesmo o projeto de lei exige auditoria), etc.
Mas, da mesma forma que o acúmulo dessa informação que já está lá
poderia ser usada contra o cidadão, pode também ser usada em favor do
cidadão.  Remeto ao cenário que apresentei no meu artigo citado acima:
se o cidadão não tem no seu celular o registro de que recebeu o vírus
da rede, e o provedor não manteve esse registro pra ele, ele pode
muito bem ser considerado culpado de injetar o vírus na rede, sem ter
de fato culpa alguma.  Já se o provedor pode documentar que houve
determinado tráfego compatível com a entrada do vírus através da rede,
a defesa do consumidor pode ser beneficiada por essa informação.
Lamentavelmente, o projeto de lei não prevê a possibilidade de o
próprio cliente obter acesso aos logs mantidos a seu respeito.  Isso
poderia e deveria ser melhorado.


Pedro Rezende levantou outro cenário alarmista, em que o projeto de
lei poderia ser usado para usurpar e exceder direitos autorais de
terceiros.  Embora o cenário proposto tenha me parecido genial numa
primeira leitura, após leitura cuidadosa do projeto de lei não mais me
parece adequado; talvez reflita receios sobre uma versão anterior do
projeto.

No caso, ele se intitulou "dono" da tabuada e passou a exigir
licenciamento para sua publicação, alegando poder utilizar o novo
projeto de lei para exigir o licenciamento.  É certo que a letra da
proposta dá margem a abusos, mas não me parece que sejam abusos desse
tipo.  O artigo em questão proposto para o código penal diz:

  Art. 285-B. Obter ou transferir dado ou informação disponível em
  rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema
  informatizado, sem autorização ou em desconformidade à autorização
  do legítimo titular, quando exigida:

Vejo dois elementos que invalidam o cenário proposto.

Primeiro, a tabuada certamente já é de domínio público, portanto o
"quando exigida" já invalida a situação proposta: ninguém precisa de
autorização para publicar a tabuada.  Se bem que a lei poderia
esclarecer que não é qualquer coisa que o titular exija, mas sim nos
casos em que a lei exija autorização do titular.

Segundo, ele não é o legítimo titular daquela expressão.  Que eu
saiba, nada impede que alguém tente cobrar de outros pela concessão de
licenças sobre o que não tem autonomia para permitir.  Pode
caracterizar estelionato, plágio, extorsão, etc, mas se alguém anuncia
"se você me pagar R$10, eu prometo não processar você se você publicar
esse livro que contém a tabuada", me parece enganoso, mas não
criminoso.

O risco real do projeto de lei, me parece, é para quem se fia numa
licença enganosa e publica material sem autorização do legítimo
titular.  Vamos dizer que eu colocasse num site tipo theorasea.org um
filme que violasse o direito autoral de terceiros, mas *eu* digo que
tenho permissão para distribuí-lo e autonomia para conceder ao site e
a qualquer outro permissão para distribuí-lo.  Pois bem...  Neste
caso, quem se fia em minha permissão e redistribui o filma pode muito
bem ir pra cadeia.  Mais conflitos entre Google (Youtube) e a justiça
brasileira à frente?

Quero crer que a justiça veria com bons olhos quem se fiou na
permissão ilegitimamente concedida por outro, assim como quem teve seu
computador transformado num zumbi infrator, e consideraria quem
ilegitimamente concedeu a permissão e quem controla o zumbi como os
reais culpados dos crimes.

Porém, é assustador que a lei aparentemente tipifique como crime o
"obter" dado disponível na rede de computadores.  De novo, o "quando
exigida" parece reverter possíveis riscos relacionados a direito
autoral do lado de quem recebe a informação, mas a letra da proposta é
suficientemente ambígua para dar margem a uma leitura bem mais
perigosa, em que sequer acessar uma página qualquer na Internet passe
a constituir crime, caso a página contenha um texto ou imagem
distribuído sem autorização de seu legítimo titular.  Não vejo
situação em que o "obter" se justifique.  Alguém ajuda a entender o
que ele está fazendo ali?


Uma melhoria ao artigo que trata de inserção e difusão de código
malicioso seria exigir intenção ao ao menos ciência da difusão para
caracterizar crime.  Códigos maliciosos freqüentemente se difundem sem
intenção ou mesmo conhecimento dos donos dos computadores que
invadiram.  Embora haja muitos casos de negligência na manutenção da
segurança de computadores contra invasões por código malicioso, não me
parece adequado criminalizar a vítima de uma invasão.  Não existem
sistemas invulneráveis.


Outros detalhes que o projeto de lei poderia aproveitar para melhorar,
na proposta de alteração do artigo sobre pornografia infantil, do
estatuto da criança e do adolescente, são a redação ambígua e a
preservação de provas.  Por exemplo, a proposta criminaliza a
receptação e a posse de material pedofílico, em adição ao que já era
criminalizado anteriormente:

  Apresentar, produzir, vender, {+receptar,+} fornecer, divulgar,
  {-ou-} publicar {+ou armazenar consigo+}, por qualquer meio de
  comunicação, inclusive rede mundial de computadores ou Internet,
  fotografias{+,+} {-ou-} imagens com pornografia ou cenas de sexo
  explicíto envolvendo criança ou adolescente:

Seria adequado prever exceções no projeto de lei para fins de
denúncia, investigação e prova judicial.  Por exemplo, um promotor de
justiça ou um juiz não só não poderão apresentar ao juri as imagens
encontradas no computador de um acusado de pedofilia, nem mesmo
poderão mantê-las em poder da promotoria ou do tribunal, de acordo com
a proposta da lei.  Todo pedófilo terá de ser julgado inocente por
falta de provas, à exceção daqueles acusados por promotores e juízes
que aceitem para si as penas de 3 a 8 anos de reclusão por cometer o
crime de armazenar consigo, no exercício de seu cargo ou função,
conforme §2º inciso II, as tais imagens proibidas.

Fora isso, a leitura do artigo conforme alterado pela lei 10764 já é
ambígua.  Por certo, a leitura pretendida é de fotografia ou imagem
que contenham pornografia, ou que contenham cenas de sexo explícito,
em que a pornografia ou as cenas envolvam criança ou adolescente.
Porém, a redação antiga dá margem para outra leitura, em que se
criminalizariam atos relacionados a pornografia na forma de
fotografias ou imagens (independentemente de qualquer presença
infantil ou adolescente), bem como cenas de sexo explícito envolvendo
criança ou adolescente.

A proposta do projeto de lei, ao trocar o "ou" por vírgula, parece
conduzir à leitura não pretendida, dando margem inclusive a outra
interpretação, que criminaliza (i) quaisquer fotografias, (ii) imagens
pornográficas, e (iii) cenas de sexo explícito infanto-juvenil.  Para
os que mantêm álbuns de fotos da família na Internet, e para os que
publicam e/ou recebem revistas, filmes, etc de conteúdo adulto
erótico, uma redação mais clara que não desse margem a terrorismo
moralista ou à criminalização de álbuns de memória fotografia seria
adequada.


Parece-me que grande parte dos problemas que apresentei são
relativamente fáceis de corrigir.  Mas não me parece que eles
justifiquem o furor de oposição que esse projeto tem recebido.  Será
que estou deixando de ver alguma coisa, ou dando-lhe menos importância
do que algo merece?

Comentários são bem-vindos,

-- 
Alexandre Oliva         http://www.lsd.ic.unicamp.br/~oliva/
Free Software Evangelist  [EMAIL PROTECTED], gnu.org}
FSFLA Board Member       ¡Sé Libre! => http://www.fsfla.org/
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