Viva a crise!
Acrise é boa. Nada melhor que uma crise para nos dar a sensação de
que a vida muda, que a história anda, que a barra pesa. A crise nos
tira o sono e nos faz alertas. A crise nos faz importantes pois,
subitamente, todos se preocupam conosco - nós, a opinião pública,
nós o "povo", nós, os babacas que todos preferiam na sombra, na
modorra e que, de repente, podem sair batendo panelas nas ruas. A
crise nos inclui na política. Aliás, crise no Brasil é quando a
política fica visível para a população.
A crise é boa porque acabaram as crises cegas, radiofônicas, anos
50. Hoje as crises são "online", na internet, nos celulares, com
todas as sacanagens ao vivo, imediatas. A crise é uma aula, quase um
videogame. A crise é um "thriller" em nossas vidas.
A crise nos permite ver a verdade. Mas, como - se todos mentem o
tempo todo? A crise nos ensina a ver a verdade de cabeça para baixo.
Ensina que a verdade é o contrário de tudo que dizem os depoentes,
testemunhas e réus. A verdade é tudo que os políticos negam.
A crise é boa para conhecer tipos humanos. Temos de tudo - uma
galeria de personas, de máscaras, de bonecos de engonço, de
mamulengos, temos um "reality show" sobre o Brasil, temos o desfile
de caras, de bocas, de mãos trêmulas, de risos e choros
constrangidos, temos as vaidades na fogueira, os apelos à razão,
temos os clamores de honradez, os falsos testemunhos, os tratamentos
arcaicos, antigas gramáticas, temos as vossas excelências, as
senhorias, vemos os alicerces do país aparecendo, a lama debaixo das
dignidades, temos os intestinos, os pés de barro, os nós na tripa,
temos os apêndices supurados, temos os miasmas que nos envenenam
aparecendo sob a barra da saia de juízes e desembargadores, as
sujeiras escorrendo sob as frestas da lei. E tudo vai diplomando o
povo em ciência política. A crise é boa também para acabar com
alegorias proletárias, com a crença de que operário teria um saber
metafísico e santificado e mostra que para ser presidente tem sim
que estudar e ter competência.
A crise é também aula de teatro. A crise nos revelou a revolução
dramática de Roberto Jefferson. Trata-se de um "Gargantua", um ex-
Pantagruel, um raro tipo rabelaisiano que se virou ao avesso e
transformou merda em ouro, mentira em verdade. Jeff é o anti-herói
heróico. Jeff conhece a boca do boi, a baba das coisas, a barra
pesada. A verdade de Jeff tem a legitimação do crime assumido. Jeff
suja a limpeza e não denuncia exceções, mas exibe a Regra. Crise
também é cultura. A crise é Brecht, Shakespeare, Nelson Rodrigues. A
crise tem até a casa da mãe Joana, Jeanne.
Jeff nos mostrou que o crime político não é um defeito; é uma
instituição. Jeff é a prova de tudo que Sérgio Buarque estudou. Se
Jeff não existisse, tudo estaria rolando no banho-maria do PT e do
Dirceu-2010. Ouso dizer: por vielas mal freqüentadas, Jeff fez um
grande bem ao Brasil.
Jeff faz dupla com Dirceu, seu alter ego, seu espelho. Não haveria
um sem o outro. Dirceu desprezou Jeff e este o destruiu.
A crise ensina que a salvação do país é destruir os esquemas que
Jeff denunciou e que a destruição do país seria seguir o que Dirceu
queria. A crise nos espanta: como um sujeito só como Dirceu consegue
acabar com 25 anos de um partido, com um Governo e consigo mesmo? A
crise nos ensina o horror do narcisismo totalitário.
A crise ensina que os velhos "revolucionários" têm um comportamento
parecido com os políticos oligárquicos. Ambos trabalham na sombra,
na dissimulação, no cabresto dos militantes.
A crise acaba com a mitificação do PT como o partido dos "puros".
Acaba essa bobagem alegórica e messiânica em que muito intelectual
acreditou. A crise humaniza os petistas, pois os há honestos,
românticos, corretos e os há também ladrões, medíocres, famintos e
boçais. A crise vai reformar a idéia de "esquerda" no país. Vai
criar uma esquerda mais verdadeira, mais útil, mais possível. A
crise acabará com os fins justificando os meios, a crise acaba com o
"futuro" e nos trará o doce, o essencial presente, a crise nos dá
uma porrada na cara para deixarmos de ser bestas.
A crise é boa porque acaba com as ilusões do povo. A crise é boa
para gerar crise nas pessoas, crise existencial.
A crise é boa porque desmoraliza a ópera bufa em que vivemos e traz
a verdade da tragédia real. A crise acaba com a esperança e estimula
a vigilância crítica.
A crise ensina que ninguém é "revolucionário" ou "herói" ou
"comandante supremo" ou "companheiro"; as pessoas são narcisistas,
compulsivas, agressivas, dependentes, invejosas, fracassadas, com
problemas sexuais. A crise ensina mais Freud do que Marx. A crise
mostra que a velha esquerda não tem programa; tem um sonho. Que vira
pesadelo.
A crise ensina que muito mais importante que estudar a miséria do
país é estudar a "riqueza" do país. A crise mostra que não adianta
mostrar os horrores da miséria e dos despossuídos. São conseqüências
da verdadeira miséria que nasce nos intestinos das classes altas. A
miséria é a riqueza, a miséria é a própria política. A crise ensina
que revolução no país tem de ser administrativa e não "de ruptura".
A crise ensina que nossa política é tão medíocre que nos últimos
meses bastou a economia; política não fez falta. A crise mostra que
o Brasil progride enquanto dorme.
A crise nos mostra que a corrupção é terrível não pelo roubo de
grana e de galinhas mortas. A corrupção é terrível porque impede a
governança. A crise é boa pra mostrar a urgência da reforma do
Judiciário; existe a Polícia Federal, o Ministério Público, mas tudo
cessa quando cai na Justiça, a cama de todos os vícios. A crise
mostra que o problema do país são os aparelhos do Estado que não
estão mais preparados para governar. E prova que o presidencialismo
de coalisão é impossível. A crise mostra que só uma forma de
Parlamentarismo pode resolver nosso inferno.
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