O João Marcos está correto aqui:

O "sentido cotidiano" de *conjunto* não é o "sentido matemático", e o
> primeiro tem tanta relevância para o segundo quanto o sentido
> cotidiano de *continuidade* tem relevância para o sentido matemático
> da mesma noção.  Não saber separar os dois é ser incapaz de fazer
> qualquer tipo de Análise Matemática minimamente interessante.
>


Conjuntos (permitindo objetos concretos na relação ancestral de
pertencimento ou não) são objetos organizados em uma hierarquia de um modo
específico que *não* é compatível com o uso na linguagem corrente da
expressão "coleção". Conjuntos não são coleções. Vou reproduzir aqui dois
argumentos que acredito são suficientes para ver isso:

A1- Considere a coleção de bibliotecas da universidade federal fictícia do
mato grosso do norte (UFFMGN). Uma biblioteca é uma coleção de livros, uma
coleção de bibliotecas é uma coleção de coleções de livros. Suponha que o
professor de lógica da UFFMGN pergunta para o bibliotecário da mesma
universidade se a coleção de bibliotecas contém o livro de lógica de
Hilbert-Ackermann. É coerente com o uso cotidiano da palavra coleção ouvir
a seguinte resposta: "Sim, as duas edições do Hilbert-Ackermann estão na
coleção de bibliotecas da UFFMGN."
O problema é que o Hilbert-Ackermann "está na coleção", segundo o uso
cotidiano de coleção, mas não pertence à coleção porque o Hilbert-Ackermann
não é uma biblioteca.
O argumento não tem nada a ver com bibliotecas e pode trivialmente ser
reformulado em termos de outras coleções de coleções. O uso cotidiano de
"coleção" não respeita a organização hierárquica dos conjuntos.


A2- Se conjuntos são coleções no sentido cotidiano, então o conjunto vazio
é uma coleção. Isso faz de mim um colecionador de armas de fogo. Contudo,
como não tenho nenhuma arma de fogo eu não sou um colecionador de armas de
fogo segundo o uso cotidiano do termo: eu não preciso fazer nenhum registro
na polícia federal ou nas forças armadas, não faz sentido ir ao encontro
brasileiro de colecionadores de armas, se tal coisa existir, etc.


Olhei rapidamente o arquivo de materiais online que o Mario colocou aqui.
Comparando a oferta de materiais de Lógica com a de outra área em que
também atuo (Geometria), fica claro que a situação da Lógica é bem
precária. Contudo, tenho dúvidas se vale a pena investir em construir uma
literatura em português para o assunto.

Com relação aos "conjuntos de objetos concretos", acredito que o
entendimento standard na filosofia analítica é que conjuntos podem conter
objetos concretos. Talvez o exemplo mais marcante seja o das proposições
russellianas: para Russell objetos concretos e propriedades sobre esses
objetos são constituintes de proposições. Outro exemplo: para David Lewis,
mundos possíveis são objetos concretos. Conjuntos de mundos possíveis
seriam então, segundo David Lewis, outro exemplo de conjunto de objetos
concretos. (Uma concepção standard de proposições na filosofia analítica,
diferente da teoria de Russel, é a que diz que proposições são conjuntos de
mundos possíveis.) Ainda outro exemplo: Godel no artigo What is Cantor's
continuum problem? Logo na primeira página, sobre a definição de número
cardinal: "...we certainly want it to have the property that the number of
objects belonging to some class does not change if, leaving the objects the
same, one changes in any way their properties or mutual relations (e.g.,
their colors or their distribution in space)." Claro que apenas objetos
concretos podem ter cor ou distribuição espacial.


É verdade que mesmo o básico em Lógica (e em todas as outras áreas) não é
tema sem controvérsia. Livros adoram começar com alguma afirmação
categórica sobre o que é a lógica: ciência do raciocínio, estudo das leis
do pensamento, estudo de relações formais entre portadores de valor de
verdade, estudo da argumentação válida, etc. Seria muito melhor começar
discutindo essas e outras possibilidades, bem como as várias traduções
possíveis da palavra logos. Mas para isso precisa ter competência em
análise conceitual. Os estudantes também parecem apreciar essas afirmações
categóricas, mesmo que delas não entendam nada. Eles parecem precisar dessa
"paz de espírito" para seguir em frente, já que essas discussões iniciais
"não vão render resultados".Esse espírito nada investigativo parece ser
dominante em todas as áreas. Ninguém começa um livro de matemática
arriscando dizer o que é a matemática. Não sei quando foi a última vez que
vi algum livro de geometria tentando começar com algo do tipo: "geometria é
o estudo de formas espaciais". Não é que essas coisas tenham sido
resolvidas, ao contrário. As pessoas passaram a ignorá-las, talvez por
acreditarem que isso não renda papers que vão valorizar seus currículos...

Podemos nos perguntar pelos motivos dessa postura anti-investigativa. Vejo
que, atualmente, os cursos de pós-graduação em matemática são feitos em um
ritmo muito acelerado, porque tanto o professor quanto os alunos querem
chegar rápido em algum resultado lá na frente. Não importa se ninguém
entendeu nada desde o básico, incluindo o professor. Acredito que a idéia
que esses cursos transmitem é que pesquisa em matemática é sempre sobre
alguma coisa longe e estranha. Quando alguém é perguntado sobre o "básico"
a resposta pronta é "isso está feito", mesmo quando ninguém sabe onde ou
como, ou até mesmo quando não está feito... Talvez seja por isso que os
matemáticos tem pouco apreço pelos fundamentos: eles acreditam que "está
feito", mesmo sem saber o que significaria "estar feito" nesse caso.

Abraço
Rodrigo
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