Sérgio Abranches Um caso de baixa instrução [ 13.Fev.2002 ] Uma instrução normativa do Tribunal Superior Eleitoral ameaça a estabilidade democrática no Brasil. Relatada pelo ministro Fernando Neves, está próxima de ter sua adoção examinada pelo plenário. Ela subordinaria as alianças e coligações no plano estadual àquelas firmadas para o pleito nacional.
O ministro Fernando Neves, segundo o noticiário, se manifestou contra a medida. Só li suas declarações após ter publicado a coluna. O ministro interpreta a Lei Eleitoral de acordo com o princípio que defendi aqui, de mínima interferência da Justiça no processo. Para ele, a lei não proíbe as alianças, nem obriga a padronização. Portanto, elas são da livre escolha dos partidos. Uma voz de sensatez. A idéia parece não ter pai nem mãe. A suite das matérias sobre o assunto indica que a possibilidade de uma instrução normativa teria nascido de uma consulta de deputados do PDT, Miro Teixeira, José Roberto Batochio, ex-presidente da OAB, Fernando Coruja e Pompeo de Mattos. Só Miro Teixeira se manifestou a favor da vedação. Não posso deixar de registrar minha suspeita de que existe muita gente a favor dessa proibição, que favorece aos partidos que têm menor capacidade de realizar alianças - o caso do PDT, vítima das idiossincracias de Brizola é apenas um deles - e aos partidos que tirariam vantagens do fato de seus concorrentes ficarem impossibilitados de ampliar seus palanques regionais. Mas só Miro teve a coragem de defender a idéia. Não obstante a defesa que faz da idéia em si, consultas desse teor ao TSE podem sempre ser vistas como uma tentativa de usar o poder do Judiciário, para reduzir a competitividade dos adversários. É o velho golpe do tapetão. Nada disso invalida minhas opinões sobre a idéia e sobre o papel do TSE, que publiquei ontem, 13 de fevereiro e mantenho aqui, com esses esclarecimentos adicionais. É uma idéia viciada e viciosa. Só tem defeitos. E o pior deles é ignorar totalmente a história e a dinâmica política do Brasil. Um tribunal eleitoral - se é que deles precisamos - deveria ter como principal atributo o pleno conhecimento da história e do modelo político do país. Mas, sobretudo, deveria ter como compulsória a sensatez de não tomar decisões ou introduzir mudanças casuísticas cujos efeitos colaterais possam transcender o escopo de sua ação, que deveria ser minimalista. Isto é, o tribunal deveria se imiscuir o mínimo possível no funcionamento das instituições, reservando sua intervenção parcimoniosa para garantir o respeito a essas instituições e regras e a lisura e eqüanimidade das disputas eleitorais. Qualquer coisa a mais é sempre demais. Seria interferência ilegítima e indevida, no campo da legislação política, a qual, em uma democracia, deve ser aquela concebida com o máximo dos cuidados. Autoritarismo Mas, vamos aos seus defeitos, deixando por último o da ignorância política. É uma idéia antidemocrática, centralista e autoritária. Tem algum cabimento, em uma democracia plena, que um órgão do Judiciário se arrogue o papel de dizer quem pode ou não se aliar com quem, na luta político-eleitoral? É o mesmo que fizeram os militares, ao vincular o voto, ou criar dois partidos um que mandou ser governo sem limites e o outro ao qual determinou ser oposição, com limites. É igual à criação de sublegendas, ou à proibição de que partidos tivessem "partido" no nome ou obrigar que partidos tenham "partido" no nome. Enfim, abusos autoritários. Ainda por cima, quer mudar uma regra essencial do sistema eleitoral atual - baseado em dois turnos e em alianças e coligações - quando o processo eleitoral já está obviamente em curso, embora o calendário eleitoral marque essas definições para junho. Como todo formalismo, é cego à realidade. Não vê o vivido, só o que está escrito nos planos e nos atos normativos. Também se essa gente não existisse, não teríamos tido Kafka e seus burocratas, que parecem absurdos mas são apenas reais. É centralizadora, porque presume que a aliança nacional seja mais legítima, ou mais verdadeira ou mais válida do que as alianças estaduais. São alianças igualmente legítimas, verdadeiras e válidas. Mas politicamente diferentes. Esta questão pertence ao capítulo do desconhecimento da política brasileira, sobre o que falarei adiante. É antidemocrática, porque cerceia o direito de associação. Autoritária, porque impõe uma visão discutível, simplista, arbitrária, como se fosse uma regra de senso comum e parte integrante do papel de coordenar as eleições e garantir que elas se façam de acordo com a lei. Não é. Ela não só não faz sentido algum, como não é da alçada do TSE legislar sobre alianças e coligações. E há quem tenha o desplante de dizer que a idéia é boa porque poderia melhorar a qualidade dos partidos. A que ponto chega o oportunismo, quando associado a uma concepção tosca da política e dos partidos e à falta de visão estratégica! A que extremos pode levar a insegurança tucana e de outros menos votados. Municipár, a favor, federár, contra Finalmente, é a expressão da ignorância. Primeiro, porque desconhece o fato primário e elementar de que o Brasil é uma federação. A rigor, o TSE - se é que precisamos de justiça eleitoral - não deveria ter sequer o direito de se pronunciar sobre os pleitos estaduais, a não ser naquilo que ferissem a Constituição Federal ou os direitos de outros estados. O tribunal estadual deveria ser soberano no âmbito estadual. Mas a corrupção aumentaria, argumentariam alguns. A resposta é simples e está no cotidiano da história: centralização e autoritarismo não acabam com a corrupção, em geral simplesmente a escondem e/ou a trocam de lugar. São o caminho mais eficiente para menos transparência e menos legitimidade. A federação deve ter como objetivo aumentar e não diminuir a autonomia dos estados. Por ignorância, portanto, se propõe um golpe judiciário contra a federação. Segundo, é ignorante porque não mostra ter o menor conhecimento de como funciona a política brasileira. E sempre funcionou assim. Não é novidade que pudesse justificar, digamos, apenas um atraso de percepção. Já na ditadura, Ziraldo, numa charge genial para o JB, que valia por um manual inteiro de ciência política aplicada às eleições brasileiras, mostrava dois mineiros do interior discutindo as próximas eleições. Infelizmente, perdi meu exemplar nas mudanças muitas da vida, não posso citar com precisão, mas era algo assim: "Complicou né cumpade?" "Não, cumpade, é simples: municipár nóis vota a favor, federár nóis vota contra". No regime militar era assim que funcionava a dupla lógica da política brasileira nas eleições: no plano local, de acordo com as conveniências e os interesses locais, a Arena abiscoitava uma fatia significativamente maior do voto. No plano nacional, segundo os valores e os interesses nacionais, o MDB faturava o protesto contra o autoritarismo. O povo sabia que o prefeito da Arena tinha acesso aos cofres do Tesouro, cuja chave ficava sob o poder de homens como Delfim Neto, por intermédio da famigerada SAREM - Secretaria de Articulação com Estados e Municípios - mas descontava, votando nos deputados e senadores do MDB, para protestar contra os governadores nomeados, a censura, o general-presidente de plantão. Duas lógicas, duas realidades É essa dupla lógica que explica como um partido como o PFL pode ser ao mesmo tempo fisiológico e reformista, atrasado e modernizante. Afinal, o fisiologismo e o atraso estão no seu DNA. Nasceu de uma costela do PDS, que não era mais que a Arena depois de uma operação de troca de sexo, para ajustar-se ao mundo pós-militar. Esta, nunca foi muito mais do que o ajuntamento das células fisiológicas colaboracionistas do PSD e da UDN, no partido formado para ser governo sem limites e confrontar o outro, feito para ser oposição com limites. Claro que há uma contradição entre o papel privatizante do PFL no plano nacional e o fato de que vive das benesses do poder. Mas essa contradição é de longo prazo. Quando várias gerações tiverem morrido, ou o partido terá se transformado também no plano local, ou desaparecido com os últimos fisiológicos. Enquanto isso, opera nas duas lógicas. É evidente que nada é tão puro assim, da mesma forma que uma parte do fisiologismo encontra ainda abrigo no plano nacional, há espaço para lideranças pefelistas mais modernas no plano local/estadual. Além disso, não estou dizendo que as alianças estaduais sejam fisiológicas - algumas não são - e as nacionais não sejam fisiológicas - algumas são - apenas que elas se devem a interesses, situações, realidades distintas. Seu cálculo é, portanto, diferente. Imaginar que mudando a regra é possível fazer com que ele deixe de ser fisiológico é que esá errado. É mais fácil matar o lado não fisiológico com alterações discricionárias desse tipo. Os exemplos são muitos: a lógica da política estadual não pode ser subordinada ou resumida pela lógica nacional, cujos contornos e dinâmica são distintos. Também não dá para fazer uma divisão maniqueísta do tipo local-fisiológico, nacional-moderno. Há estados em que a política já não é majoritariamente determinada pelo fisiologismo e nem por isso a dinâmica dos interesses locais se nacionalizou. Jamais se nacionalizará o local. Nem na marra. É por causa dessa dupla lógica, desse cálculo distinto, que partidos podem ser aliados habituais no plano nacional, embora sejam inimigos figadais no plano estadual. Igualmente, partidos que se odeiam nacionalmente, são capazes de casamentos estaduais e municipais. Quem confronta mais o poder do PFL de ACM na Bahia? PSDB e PMDB. Quem é o mais próximo adversário do PSDB no Ceará? O PMDB. Foram capazes, entretanto, de se aliar no segundo turno das eleições municipais, em Fortaleza, para evitar a vitória do PCdoB. Mas disputarão voto a voto o governo estadual. Pior, de um lado um senador ex-tucano, Sérgio Machado, que pregou a reforma política anos a fio para impedir que fizessem o que vai fazer: trocar de partido em função das mudanças na política estadual, que afetavam seus interesses e suas ambições. De outro, um velho colega de bancada tucana, Lúcio Alcântara, que sempre teve reservas com relação à validade de vários aspectos da reforma política defendida por Machado. Estava certo e foi seu agora adversário quem teve que ceder à realidade da vida. Não é a lei... O caso da reforma política e a aparente incongruência do senador Sérgio Machado ilustram um outro aspecto desse desconhecimento das leis naturais da política. O sonho formalista e tecnocrático de mudar hábitos, costumes e práticas, mudando a lei, é mais que pura quimera. É um delírio autoritário. Se a lei determinasse comportamentos, bastaria uma simples, dizendo coisas do tipo "não matarás", "não roubarás", "não fraudarás", para criar um mundo melhor. A proibição de alianças puramente locais produzirá mais casuísmos e expedientes. A lógica da politica se imporá por outros caminhos, menos transparentes e menos legítimos. O fisiologismo não é um ato de vontade dos políticos, que nasceram fisiológicos. É uma ação racional, que encontra resposta social e abre um caminho mais rápido e controlável para o poder. Quando não tiver mais esta resposta, desaparece. Como acabar com essa resposta? Na marra? Vigiando e punindo? Não. Com desenvolvimento: acabando com as indústrias da bica d'água, com água e saneamento básico; da seca, com irrigação e alternativas autosustentáveis para a população; de dentaduras, com assistência odontológica adequada, educação e alimentação; da cesta básica, com educação, emprego e renda. E por aí vai. Para cada indústria que forma o capital do fisiologismo, há uma causa social, que cria a demanda para o serviço que os políticos exploram para obter votos em troca. É com reformas nessas áreas, com mudanças na orientação das políticas públicas, que se acaba com essas práticas. O TSE nada tem a ver com isto. Não é tarefa dele. E com instruções normativas de tão baixa qualidade, contribuirá para piorar o quadro, não para melhorá-lo. Atenção, ministro Jobim! Ainda há tempo para interromper mais essa marcha da insensatez. Sérgio Abranches é cientista político. ______________________________________________________________ O texto acima e' de inteira e exclusiva responsabilidade de seu autor, conforme identificado no campo "remetente", e nao representa necessariamente o ponto de vista do Forum do Voto-E O Forum do Voto-E visa debater a confibilidade dos sistemas eleitorais informatizados, em especial o brasileiro, e dos sistemas de assinatura digital e infraestrutura de chaves publicas. __________________________________________________ Pagina, Jornal e Forum do Voto Eletronico http://www.votoseguro.org __________________________________________________