O tema me parece muito interessante Gustavo. As citações que vc. traz, sem dúvida, também são por demais instigantes. Aliás, desde logo, peço que avises a respeito da publicação de sua dissertação, a qual tenho interesse de adquirir.
 
Sobre ser uma opção política a escolha de onde aplicar os recursos financeiros destinados à saúde, devo concordar. Contudo, não posso concordar que esta opção política fique reservada a determinados interesses ou, como escreveu Walzer "tais limites podem ser arbitrários, fixados por alguma coalizão de interesses temporária ou por maiorias eleitorais". Acho que, nestes casos, o cidadão prejudicado por tais ínteresses políticos e arbitrários e que vê sua vida ameaçada, deve sim submeter a ameaça de direito à apreciação do Poder Judiciário, que analisará a presença ou não da necessidade.
 
Sem dúvida, o Judiciário tem responsabilidades ao analisar a matéria, não pode sair distribuindo rendas da saúde para qualquer um e para qualquer pedido (como p. ex. tratamentos no exterior para a classe média - em casos sem a mínima urgência ou necessidade). Mas a tese de que as normas que garantem o direito à vida e à saúde (dever do Estado) são meras normas programa, com a devida venia, não convence.
 
O assunto, por certo, é palpitante. E a discussão, como sempre, vai trazendo novas visões e aspectos de convencimento, sempre importantes.
 
Abraço, Luiz Claudio Portinho.
 
 
----- Original Message -----
Sent: Thursday, August 31, 2000 8:27 AM
Subject: RES: [IBAP] saude

Apenas para  registro, Portinho:

 

Dentro dos próximos meses deve ser publicada pela Editora Renovar, do Rio de Janeiro, minha dissertação de mestrado que ataca essa linha jurisprudencial.  O uso dos silogismos nesse campo (I- há um “direito” à saúde, II- fulano está doente, III- logo “vire-se o Estado”) é inteiramente equivocado.  Apenas como exemplo, transcrevo abaixo algumas citações que uso no meu trabalho:

 

             Há hoje um mito que países prósperos como os Estados Unidos não precisam se preocupar com o problema da seleção de pacientes, já que há recursos suficientes para todos.  Há até quem acredite que essa suficiência se estende mundo afora.  Esse mito é menos que meia verdade.  A verdade nele contida é que há recursos financeiros para eliminar muitas das escassezes de hoje.  Serão esses recursos tornados disponíveis para satisfazer as necessidades médicas de todos?  Infelizmente, isto não é provável, mesmo nos Estados Unidos.  Outros recursos não financeiros, como órgãos para transplante, são escassos em relação às necessidades.  Novas escassezes, ademais, são inerentes ao progresso da tecnologia.  Em outras palavras, critérios de seleção de pacientes são desesperadoramente necessários hoje em todos os lugares e continuarão a sê-los no futuro.

 

(KILNER, John F.  Who Lives?  Who Dies?:  Ethical Criteria in Patient Selection.  New Haven: Yale University Press, 1990, p. 3  -  tradução livre)

 

             Em segundo lugar, pode a liberdade médica sobreviver em um ambiente de limite orçamentário?  Os médicos defendem zelosamente a liberdade médica, o direito de prescrever o que pensa ser o melhor para cada caso.  Essa liberdade inclui o direito de cada médico prescrever remédios, de cada especialista aceitar ou rejeitar pacientes, prescrever exames, de realizar ou prescrever procedimentos cirúrgicos que pensa possam ser benéficos.  Como pode uma liberdade como essa ser preservada quando o número de leitos e de salas de cirurgia  é restrito, a capacidade de realizar exames é limitada pelo acúmulo, resultado da diminuição nas compras de equipamentos, e o orçamento para remédios tem que competir com outras grandes prioridades em gastos hospitalares?

 

(AARON, Henry J & SCHWARTZ, William B.  The Painful Prescription: Rationing Hospital Care.  Washington: The Brookings Institution, 1984, p. 10  -  tradução livre).

 

             A despeito da força intrínseca da palavra, as necessidades são de difícil definição.  As pessoas não têm apenas necessidades, elas têm idéias sobre suas necessidades; elas têm prioridades, elas têm níveis de necessidades.  Essas prioridades e níveis devem-se não apenas à natureza humana, mas também a fatores históricos e culturais.  Como os recursos são sempre escassos, escolhas difíceis têm que ser tomadas.  Penso que tais escolhas somente podem ser políticas.   Elas estão sujeitas a alguma elucidação filosófica, mas a idéia de necessidade e o compromisso com o bem comum não levam a uma determinação clara de prioridades ou escalonamento.

             As necessidades não são apenas de difícil definição, elas são também expansivas.  Na frase do filósofo contemporâneo Charles Fried, as necessidades são vorazes, elas devoram os recursos.  Mas seria errado dizer que a necessidade não pode ser um princípio distributivo.  É, na verdade, um princípio sujeito a limitação política.  Tais limites podem ser arbitrários, fixados por alguma coalizão de interesses temporária ou por maiorias eleitorais.  Considere-se o caso da segurança pessoal numa cidade norte-americana moderna.  É possível prover segurança absoluta, eliminando todas as fontes de violência salvo as domésticas, se puséssemos um posto de luz a cada dez jardas [aprox. 10 metros] e um policial a cada trinta [cerca de 30 metros], por toda a cidade.  Todavia, isso seria muito caro e então optamos por algo menos.  Quanto menos só pode ser decidido politicamente, e só pode ser decidido politicamente: é para isso que servem os arranjos políticos na democracia.  Qualquer esforço filosófico para estipular em detalhes os direitos ou titulações dos indivíduos restringiria radicalmente o escopo do das tomadas de decisões na democracia.

 

(WALZER, Michael.  Spheres of Justice.  Basic Books, 1983, p. 66.  O trecho em itálico está em observação ao pé da página 67  -  tradução livre).

 

 

             A questão é complexa e não comporta soluções simplistas.  Se vc. ou alguém tiver interesse no debate, podemos fazê-lo.  Quero apenas deixar o registro da complexidade da questão e da falsidade da afirmação “boazinha”, “afirmadora dos direitos sociais”, que, pelo que tenho visto, serve para atender a classe média com tratamentos caros, as vezes no exterior, a despeito de qualquer consideração sobre os reflexos gerais.

 

 

Gustavo Amaral

 

-----Mensagem original-----
De: [EMAIL PROTECTED] [mailto:[EMAIL PROTECTED]]Em nome de Luiz Claudio Portinho
Enviada em: quinta-feira, 31 de agosto de 2000 01:45
Para: MAILIST IBAP
Assunto: [IBAP] saude

 

Infelizmente ainda se encontra teses contrárias ao precedente abaixo transcrito, especialmente por parte de alguns administradores. Resta-me apenas aplaudir esta linha decisória que prevalece em nossos tribunais.

 

MEDICAMENTO. FORNECIMENTO. DOENTE CARENTE.

Diante da negativa ou omissão do Estado em prestar atendimento à população que não possui meios de obter medicamentos necessários à sobrevivência, a jurisprudência vem se fortalecendo no sentido de permitir que esses necessitados possam alcançar tal benefício. Pelas particularidades do caso, interpreta-se a lei de forma mais humana e teleológica, em que princípios de ordem ética-jurídica conduzam ao único desfecho justo: a preservação da vida. Sem razão alguma a discussão a respeito de serem ou não programáticas as regras dos arts. 6º e 196 da CF. Com esses fundamentos, a Turma deu provimento ao recurso para compelir o Estado do Paraná a fornecer o medicamento à recorrente. RMS 11.183-PR, Rel. Min. José Delgado, julgado em 22/8/2000.

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