PessoALL:

Uma conversa com um colega estes dias me motivou a escrever a presente
mensagem, que tem tanto um componente sociológico quanto um componente
mais propriamente lógico (bem como um interesse de fundo pedagógico).

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(A)

Segundo meu colega, é bem comum nas aulas, nos vídeos e nos livros de
Matemática pelo Brasil (talvez fora do Brasil também?) um uso mais ou
menos relaxado[§] da Lógica para justificar certas passagens
argumentativas.  Em particular, muitos professores de Matemática
presumivelmente acenariam para a possibilidade de justificar
estratégias de demonstração (digamos, o raciocínio por contraposição)
usando *tabelas de verdade*, o que também explicaria a razão pela qual
vários livros de "matemática elementar" ---usados a nível de
graduação, vejam bem---, bem como vários vídeos no YouTube também
falariam de tabelas de verdade como um procedimento matematicamente
relevante para esclarecer ou fundamentar a lógica subjacente a um
determinado argumento matemático.

[§] O adjetivo "relaxado", acima, aponta para usos absolutamente
informais de tautologias como justificativas para certas passagens,
através de rabiscos feitos ao lado da demonstração principal, no
quadro, supostamente para "explicar por que a coisa funciona".
Note-se, em particular, que em tais usos nunca há qualquer menção a
resultados de completude, digamos, conectando tabelas e demonstrações
formais (ou semi-formais).

As primeiras perguntas que me vêm à mente sobre aquilo que foi relatado acima:
(A1) Quais as opiniões de vocês ---seja como discentes, seja como
docentes--- acerca das situações suprarreferidas, a partir de suas
experiências em sala de aula?
(A2) Quais destes procedimentos ---tabelas de verdade? argumentos
dedutivos? estratégias de demonstração?--- poderiam (ou deveriam) ser
trazidos para mais cedo, para o ensino pré-universitário, com alguma
vantagem para os alunos?

(A minha impressão inicial sobre A2 seria de que não há nada no
procedimento das tabelas de verdade, em particular, possivelmente
usadas para ensinar "raciocínio lógico" ---resolver charadas, por
exemplo---, que precise ou deva esperar até além do Ensino Médio.  Mas
também não estou seguro de o quanto isto tudo ajudaria quando a
"matemática de verdade" ---vejam o item B, abaixo--- chega, no Ensino
Superior.)

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(B)

Esta segunda parte é talvez mais opiniosa (opiniática?), da minha parte.

Mesmo ciente de que muitos livros de "matemática elementar" têm seus
capítulos sobre lógica proposicional, incluindo tabelas de verdade, e
mesmo ciente de que vários colegas gastam boas aulas sobre este
assunto (e não estou falando de aulas sobre Circuitos Lógicos), por
exemplo, em um curso inicial de Matemática Discreta, de Topologia, ou
de Análise, parece-me algo surpreendente que as *tabelas de verdade*
tenham um papel muito relevante para justificar argumentações
matemáticas mais sofisticadas.  Com efeito, se é fácil imaginar como
usar tabelas de verdade para procedimentos _refutativos_, por exemplo,
usar a tabela de verdade da implicação para justificar porque a
sentença A-implica-B é falsa quando A é verdadeira e B falsa, ou como
usar a tabela de verdade da disjunção para justificar a falsidade de
uma sentença da forma A-ou-B dada a falsidade de ambos e B, parece-me
no mínimo desafiante usar diretamente as tabelas da implicação ou da
disjunção para justificar, digamos, uma demonstração por _raciocínio
hipotético_ ou uma demonstração por _raciocínio por casos_ (e eu
provavelmente estenderia a minha perplexidade de modo a cobrir
praticamente qualquer outra estratégia matemática clássica de
argumentação).

As primeiras perguntas que me vêm à mente, neste caso, são:

(B1) Será mesmo o caso que é útil recorrer a tabelas de verdade (ou
lógica proposicional) para justificar estratégias matemáticas mais
sofisticadas (e absolutamente comuns)?  Se pensamos em um curso de
Análise Real, por exemplo, os passos argumentativos de mais interesse,
logo nas primeiras aulas, envolvem quantificadores aninhados.  Se
pensamos em um curso de Matemática Discreta, conceitos como
divisibilidade, congruência-módulo, supremos e ínfimos pressupõem que
entendemos como lidar com expressões quantificadas.  As equivalências
lógicas que poderiam "facilitar a vida", nestes casos, geralmente
envolvem mais do que conectivos proposicionais --- e quer me parecer
que nem mesmo os fragmentos proposicionais das ditas equivalências, no
fundo, _precisam_ ser justificados via tabelas de verdade.

(B2) Consideremos um teorema "típico" de livro-texto, em Matemática:
"Seja C um coiso com as propriedades A e B.
Então C tem a propriedade D."
Poderíamos traduzir isto assim, digamos:
(\forall C:coiso)((A(C)\land B(C))\to D(C))
(Para ficar mais interessante a pergunta que segue abaixo, sugiro
assumirmos que existe um coiso C que nem tem a propriedade D nem falha
a propriedade A&B.)
Bem, baseado na parte A, acima, um uso que consigo imaginar para
tabela de verdade, aqui, seria para justificar, digamos, a
curryficação ---como é usual fazer em Computação ou em
Linguística/Semântica Formal--- da sub-expressão (A(C)\land B(C))\to
D(C) para uma expressão da forma A(C)\to (B(C)\to D(C)).  O restante
do raciocínio, numa demonstração direta do "teorema típico",
tipicamente seria conduzido "identificando contextos, criando e
descarregando hipóteses", como fazemos, por exemplo, através do
formalismo da Dedução Natural.  Vocês acham que haveria outros usos
interessantes para tabelas de verdade, neste tipo de argumentação
através de "raciocínio direto"?  Seria justificável, para tais usos,
que gastássemos muito tempo das aulas de Matemática a nível superior
ensinando os estudantes a fazerem tabelas de verdade?

(Subjacentes às minhas perguntas, claramente, está a opinião
---enviesada?--- de que tabelas de verdade são bem menos úteis do que,
digamos, um "filósofo tradicional" poderia imaginar, no que diz
respeito ao trabalho diário do "matemático praticante".)

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Agradeço desde já aos colegas desta lista por compartilharem seus
sentimentos acerca destes assuntos.

[]s, Joao Marcos

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