Grandes Samuel, Marcos Silva e Colegas,


Parabéns pela conversa de bar online, Samuel e Marcos. Ouvir o Samuel é 
sempre um grande prazer, e ouvi-lo respondendo as perguntas perspicazes do 
Marcos Silva é muito melhor. Pena que perdi ao vivo. Adorei o papo. Ouvi 
hoje.


Tá aqui o link para quem quiser assistir. Recomendo:

https://www.youtube.com/live/fHihPJqhsfA?feature=share


Deixa eu fazer uma pergunta, Samuel. Quando você diz, meio provocativo, que 
a matemática é ZFC ( ou a TC) o que você quer dizer com isso?


Você quer dizer que a matemática é UM dos tabuleiros (ou modelos) onde as 
regras de ZFC se aplicam?


Ou você quer dizer que a matemática é a própria ZFC (as regras)?


Acho que é o primeiro caso. Afinal, você é um matemático, não um lógico, ou 
um computeiro, ou um filósofo que não entende nada de matemática (como eu).


Mas você, num dado  momento, disse que o pessoal da Teoria de Conjuntos —  
incluindo você mesmo — costuma se ver como semantista e, questionado pelo 
Marcos, você disse algo que eu entendi como afirmando que ser um semantista 
significa privilegiar as estruturas nas quais as regras se aplicam, e não 
as próprias regras.


Mas aí eu fico confuso, Samuel. Porque se a matemática é ZFC e se você é um 
semantista, então a matemática é o tabuleiro onde ZFC pode ser jogada, e 
não as regras do jogo ZFC.


Mas se ZFC não decide sentenças fechadas de sua linguagem, tal como a 
hipótese do contínuo, então as regras de ZFC não determinam univocamente o 
tabuleiro onde ela pode ser jogada. E então, há muitas matemáticas. Cada 
tabuleiro diferente em que ZFC pode ser jogada é uma matemática diferente.


E sabemos que alguns desses tabuleiros são ESSENCIALMENTE diferentes, ou 
seja, que não são isomórficos, porque sabemos que alguns deles são 
compatíveis com a hipótese do contínuo enquanto outros são incompatíveis 
com a hipótese do contínuo (compatíveis com sua negação).


Mas se você é um semantista, com tendência realista, isso me parece uma 
posição bem estranha. Você seria um pluralista matemático. 


Me parece que você se compromete com a seguinte concepção: “não é que 
existe uma realidade matemática objetiva e independente da mente. Na 
verdade existem pelo menos duas. “


Talvez existam muitas. Você diz que gosta de resultados de independência. 
Então talvez saiba se existe alguma sentença fechada S da linguagem de ZFC 
que é independente tanto de  (ZFC + HC) quanto de (ZFC + ¬HC)? Se houver, 
então já teríamos pelo menos 4 matemáticas — 4 tabuleiros não isomórficos 
para ZFC. Talvez haja infinitas matemáticas?


Mas, para além de 1, a quantidade não importa. Este caso me parece 
contradizer o famoso ditado. Dois não é bom. Dois já é demais.


Eu, que entendo quase nada de TC, prefiro interpretar os resultados de 
independência como provas de "inacabamento" da teoria -- inacabamento para  
não falar incompletude, já que você mesmo disse que não há uma 
interpretação canônica para ZFC.


Os caras não terminaram a teoria. Faltam axiomas. Eu concordo com “seu 
amigo de Brasília” que é um absurdo ZFC não decidir a hipótese do contínuo.


Isso só pode ser preguiça ou covardia dos matemáticos 🙂 

Façam aí uma convenção internacional e decidam. Você disse, ou pelo menos 
foi assim que eu entendi o que você disse, que nos tabuleiros mais quentes 
do momento, aqueles que parecem mais promissores, com mais aplicações e 
conexões, a hipótese do contínuo é falsa. Pois então, decidam aí entre os 
notáveis, ou em uma votação democrática (não, matematicocrática) que só são 
aceitáveis tabuleiros isomórficos incompatíveis com a hipótese do contínuo. 
Declarem os demais ilegais e aceitem a inscrição da negação da hipótese do 
contínuo no clube dos  axiomas.


É tipo o que fizeram com Plutão. O pobre foi expulso do clube dos planetas 
e, que eu saiba, nada aconteceu em Plutão para justificar a expulsão. O que 
os astrônomos fizeram foi complementar com  novas cláusulas as regras de 
admissão no clube dos planetas mesmo. Dizem que depois Plutão foi 
readmitido com ressalvas… não sei, parei de acompanhar.


Por que os matemáticos não fazem isso? Por que eles não admitem que ZFC 
está inacabada e declaram a Hipótese do Contínuo ou sua negação como 
axioma? Acho que é porque quase todos eles são, assim como você, 
semantistas. Um axioma é apenas uma descrição linguística desengonçada, 
feia, formal de um aspecto  da realidade matemática abstrata objetiva, 
bela, harmônica e perfeita.


Primeiro viria o tabuleiro, a realidade matemática, depois as regras, as 
teorias matemáticas. Só dá para acabar (ou incrementar) ZFC depois de saber 
com qual das duas sentenças, HC ou ¬HC o tabuleiro é compatível. Mas, como 
tem mais de um tabuleiro, alguns compatíveis com HC outros com ¬HC, e 
nenhum deles é considerado canônico, os matemáticos ficam paralisados e não 
decidem a questão.


Eu entendo e admiro esta postura dos matemáticos. Eles são como músicos que 
tiram as harmonias de ouvido, que têm sensibilidade musical. Eu não tenho. 
Nem na música, nem na matemática. Posso até brincar um pouco com as duas, 
mas preciso de cifras, partitura, de regras de teoria musical para me 
ajudar a tocar. Não tenho sensibilidade musical para tirar de ouvido ou 
propor do zero uma harmonia, tanto quanto não tenho sensibilidade 
matemática para perceber entender e intuir o tabuleiro sem as regras, para 
“fazer uma prova do livro”. Preciso consultar as regras para conseguir 
brincar.


Mas do mesmo jeito que músicos de tradições musicais diferentes 
harmonizariam “de ouvido” diferentemente uma mesma melodia, matemáticos 
imersos em tabuleiros diferentes poderiam intuir diferentemente sobre 
alguma questão matemática, tal como qual é a cardinalidade do contínuo.


A diferença é que diferentes tradições musicais podem conviver bem (embora 
não harmonicamente, com perdão do trocadilho), já diferentes matemáticas 
não convivem tão bem assim. É mais fácil ser eclético (pluralista) em 
música do que em matemática.


Mas por que, por exemplo, aceitamos o axioma do infinito em ZFC? Bem, 
porque concebemos o infinito e o infinito é independente dos demais axiomas.


É legal brincar com o infinito, conseguimos fazer isso, concebemos 
estruturas infinitas interessantes, belas, promissoras, cheias de relações 
e aplicáveis. Por que, então, proibi-lo? Eu “não sei harmonizar o infinito 
de ouvido”, mas eu consigo “ouvir, achar belas e até tocar harmonias para o 
infinito”, se estiverem em uma partitura ou cifras. Então, mesmo de modo 
grosseiro, desconfiando, tendo dificuldade com ele, eu aceito o infinito no 
jogo da matemática.


Por outro lado, um matemático harmoniza o infinito de ouvido, já o incluiu 
em suas intuições e considera que qualquer tabuleiro que se preze deve ser 
infinito. É por isso que o infinito é um axioma de ZFC.


Quem não curte muito o infinito pode até protestar e criar versões 
alternativas de ZFC incompatíveis com as usuais, com tabuleirinhos finitos, 
minúsculos, e estranhos, pensam os demais matemáticos.


Mas, no fundo, no fundo, para mim, tanto o axioma do infinito, quanto o 
axioma da escolha são ESCOLHAS já feitas. A hipótese do contínuo, ou 
melhor, a negação da hipótese do contínuo, pode também, aliás, deve, ser 
ESCOLHIDA.


Se você, Samuel, pensasse que ZFC são as regras e não o tabuleiro, seria 
muito mais fácil defender essa liberdade de escolha axiomática. É assim que 
eu penso.  Mas eu não sou um matemático e o que penso vale muito pouco 
aqui. O que importa é que mesmo quem pensa como você, como os matemáticos 
em geral pensam, pode com algum esforço concordar que a hipótese do 
contínuo é uma questão de escolha, e que ela pode ser feita. 


Qual desses tabuleiros aí é o mais legal, é aquele com o qual vale a pena a 
gente brincar? Escolham ele e peguem o axioma compatível com ele.


Desculpem a verborragia e as muitas “barbaridades” que certamente eu disse 
aqui.


Mais uma vez parabéns Marcos e Samuel pela conversa.

Grande abraço,

Daniel.

Em segunda-feira, 3 de julho de 2023 às 10:28:37 UTC-3, Marcos Silva 
escreveu:

> É hoje! :-)
>
> Convidamos todas e todos para o nosso bate papo segunda-feira, 03 de 
>> julho. Conversaremos com Samuel Gomes da Silva (UFBA) sobre infinito, 
>> números e provas, como se um matemático e um filósofo tivessem entrado em 
>> um bar. 
>
>  
>
>> O que te levou pra matemática? E pra a lógica? Por que o infinito é tão 
>> fascinante? Existem infinitos de tamanhos diferentes? Como a gente pode 
>> saber isto? Onde estão os infinitos? Na nossa cabeça? Na realidade? Em 
>> computadores? Quais são alguns paradoxos e coisas contraintuitivas da 
>> aritmética transfinita? Quais são os limites pra demonstrações 
>> matemáticas? Voce de fato tem máxima certeza e segurança na verdade de um 
>> teorema? Ou pensa ás vezes, será que isto é verdade mesmo? Você usa 
>> intuições e afetos pra suas provas matemáticas? O que é a hipótese do 
>> contínuo? Ela pode ser provada? Por que não? E se a gente tiver um super 
>> computador? É só uma questão de tempo ou não da mesmo? O matemático é um 
>> criador ou um descobridor? Como a matemática pode ser tão útil pra 
>> ciência e pra previsões sobre a realidade?
>
>
>
> https://www.youtube.com/watch?v=fHihPJqhsfA
>
>
> https://www.instagram.com/p/CuDIdM1pSyN/?utm_source=ig_web_copy_link&igshid=MzRlODBiNWFlZA==
>
> -- 
> Marcos Silva (UFPE/CNPq)
> Philosophy Department
> Federal University of Pernambuco, Brazil 
> President of the Brazilian Society for Analytical Philosophy (SBFA 
> <https://sites.google.com/view/sbfa-sbpha/in%C3%ADcio?authuser=0>)
> Director of Graduate Studies (PPGFIL/UFPE 
> <https://www.ufpe.br/ppgfilosofia/>)
> Editor-in-chief Revista Perspectiva Filosófica
> <https://periodicos.ufpe.br/revistas/perspectivafilosofica>
> https://sites.google.com/view/marcossilvaphilosophy
> "amar e mudar as coisas me interessa mais"
>

-- 
LOGICA-L
Lista acadêmica brasileira dos profissionais e estudantes da área de Lógica 
<logica-l@dimap.ufrn.br>
--- 
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "LOGICA-L" dos 
Grupos do Google.
Para cancelar inscrição nesse grupo e parar de receber e-mails dele, envie um 
e-mail para logica-l+unsubscr...@dimap.ufrn.br.
Para ver esta discussão na web, acesse 
https://groups.google.com/a/dimap.ufrn.br/d/msgid/logica-l/4935ad23-33b0-4578-89af-8c0fe035e115n%40dimap.ufrn.br.

Responder a