Omar Kaminski escreveu:
> Analogicamente: uma lei de trânsito tal diz que serei multado se furar o
> sinal vermelho. Pois é, talvez seja problema (ou não) quando todos
> começarem a ser multados por terem passado no sinal vermelho. O problema
> é ser multado ou passar no sinal vermelho? Por que passar no sinal
> vermelho é ilegal? No mesmo sentido, por que "compartilhar" é ilegal?
> Acredito, simploriamente falando, que a lei diz que você não pode
> compartilhar o que não é "seu". A desconstrução da problemática, senão
> pelo autor, passa por aí, pela "coisa". Sua música pode ser minha, mas
> não seu carro (?!)

Isto é pura ideologia

Das várias maneiras de 'simploriamente' falar sobre a questão, ou
desconstruir a problemática, por que insistir nesta?

Voce pode, sim, compartilhar o que não é seu, em várias situações óbvias.

O que não é de ninguém (o idioma, o ar, etc.) não é seu mas pode ser
compartilhado.

Se você está num ambiente fechado estará compartilhando aquilo que inala
e aquilo que exala, com os demais presentes.

O domínio de um idioma, o qual está articulado em obras autorais bem
lapidadas (conjugação correta, concordância, sinonímia, rima, métrica,
etc., outras figuras de estilo), tudo que permite a comunicação através
deste idioma e não pode nem deve ser confundido com plágio, não só pode
ser compartilhado, como deve, a bem da coesão social.

E também aquilo que é "de alguém", até obra autoral, em alguns casos
pode sim ser compartilhado, se a licença permitir. Previa e
inominadamente, no caso das licenças permissivas, como as licenças CC.

Carro é objeto cujas natureza rival e fronteiras são bem caracterizadas
e incontroversas. Da porta e do capô pra dentro é carro, pra fora é
não-carro, todos concordam. Se eu me apropriar do seu carro vc fica sem
ele, se ninguem se apropriar ele continua seu. E as criação do espírito?
Aliás, ao contrário de objetos materiais como o carro, o valor de uso de
uma criação do espírito só aumenta com o compartilhamento, e só diminui
com o cercamento promovido com a proprietarização do seu gênero.

No frigir dos ovos, a proprietarização de objetos criação-do-espírito,
ao arremedo de objetos materiais, serve para neles afixar algum valor de
troca. Porém, há um problema prático a ser antes resolvido, de natureza
semiológica: esses objetos não apresentam superfície onde se possa colar
etiqueta de preço. O que nos autoriza a perguntar por que faria sentido
atribuir valor de troca a uma criação do espírito. Para fabricarmos
riqueza individual, como se fosse do nada?  Uma tal resposta, explícita
ou insinuada, é pura ideologia, e das mais toscas. Não, NÃO SERÁ DO
NADA, e acreditar nisto constitui o grande engôdo da ideologia da PI.

Não é do nada que se fabrica riqueza atribuindo valor de troca a
criações do espírito. É às custas do acesso a criações anteriores que
tais valores serão fabricados. À custa daquelas que constituem insumos
para as criações do meu e do seu espírito, cujo acesso essa agenda
ideológica quer, a ferro e fogo, catracalizar.

É no cercamento e na catraquização das fontes de criação do espírito, do
acesso a seus insumos, que se debita o custo social desta fantasiosa
corrida do ouro virtual, conotada pela simplória pergunta retórica
"minha musica nao pode ser minha mas meu carro pode?"

Diferentemente de um carro, um objeto criação-do-espírito requer
advogados para estabelecer onde está sua fronteira, e situações em que
essa fronteira teria sido ilegalmente ultrapassada. Essas fronteiras são
as últimas do capitalismo, limite final da fetichização da mercadoria
que esta forma de organização social promove. É natural, então, que este
fetichismo queira confundir, e confunda, esses dois tipos de
'propriedade' como gatos pardos na noite negra da mesquinhez humana.

Mas não se deve confundir esta forma de organização social, que dá azo a
tal fetiche, com a natureza humana, que o alimenta. Esta leva àquela,
mas não são a mesma coisa. Esta pode, por exemplo, na medida em que as
conseqüências coletivas se acumulam perguntar-se: com que autoridade
moral aquela promove tal simplorização?

É natural que advogados queiram tratar objetos materiais e objetos
criação-do-espírito como coisas equivalentes ou idênticas perante leis
que excluam o livre compartilhamento de criações do espírito, isto é,
que rezem sobre esse tipo de 'propriedade'. É natural que legisladores
com interesses compartilhados com estes, idem. É natural que queiram
simplorizar na direção em que termina cabendo a eles decidir, pela
sociedade toda e segundo seus próprios interesses, o que é certo e o que
é errado em se tratando desse tipo de 'propriedade'.

Então, para mim, a questão de fundo é outra. Por que 'simplorizar'
sempre na direção da mesquinhez, do egoísmo, do instinto animal pela
territorialização? A sociedade que se forma desta maneira, com todos
seguindo esta cenoura, pendura na ponta de uma vara chamada 'inovação'
por uma cordinha chamada 'Direito', com recursos naturais cada vez mais
escassos, será mesmo uma sociedade melhor?

Eu arriscaria dizer que o discurso ideológico da PI será articulado com
autoridade moral inversamente proporcional à acumulação das
conseguencias nefastas da exclusão que promove.


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prof. Pedro Antonio Dourado de Rezende /\
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